PAU BRASIL?

É importante na celebração dos 200 anos da Independência ir além dos clichês festejados sem
conteúdo crítico. É incrível como, sem noções de História, a efeméride fica frágil e
se reduz a vaga de feriado ou uso político discutível. Foi pensando nisso que ocorreu significar
7 de setembro como oportunidade para transcender apropriações apressadas, rebaixando o
sentido que teve em 1922.
Convém prezar a data da Independência dimensionada no Antigo Sistema Colonial, ou seja,
depois da expansão marítima do século XV, inscrita do “modo de produção escravista”. Por
certo, o conteúdo político que propugna a autonomia política de qualquer estado é processo
continuado, não se limita a um determinado momento ou data. Assim, para aquilatar sua
essência histórica torna-se necessário o entendimento do ato batismal. Com naturalidade,
pois, desponta a questão: a partir de quando podemos pensar na Independência nacional? Se
o 7 de setembro serve como referência divisória, como discutir o tema da autonomia política
através dos tempos?

Nau portuguesa do século X

É pelo entendimento caracterizador do processo como um todo que se recorre à formação do
nosso perfil como nação. Perceber originalidades locais impõe supor o amadurecimento da
emancipação separatista, constituída ao longo de séculos, desde muito antes de ocorrer o ato
oficial. Neste sentido, lança-se mão de andamentos pretéritos organizadores de causas que,
aliás, refletem tensões das conquistas. De antemão, torna-se necessário levar em conta que o
século XIX foi de emancipação geral nas colônias – com ênfase na América – mas, no contexto
luso-brasileiro deu-se um roteiro diferente, sob a presença de uma casa real europeia.
Pensando a “história de longa duração”, ponhamos abaixo alguns mitos derrubados por
explicações superadas. E tudo então pode ser datado a partir do “encontro de culturas”, ou
seja, depois do 22 de abril de 1500. Como ato fundador da longa luta pela nossa Independência
é importante retraçar a produção de documentos atentos à chegada das naus que colocaram
frente a frente indígenas nativos e conquistadores.


Sendo desprezível acatar o termo “descobrimento” – como se a chegada da frota portuguesa
se desse em um espaço antes metaforicamente “coberto” -, o rumo da certeza de nossa
existência territorial convida conjugar alguns aspectos hoje firmados sem dúvidas: o Brasil era
conhecido antes de Cabral chegar, e não é crível admitir sequer que fomos “descobertos por
acaso”, em consequência do desvio de rotas que evitariam calmarias. Pelo reverso, afiança-se
que o Brasil fazia parte dos planos náuticos expansionistas portugueses, e a exuberância da
Escola de Sagres é prova disso.
Consideremos alguns fatores importantes: desde 1351 o nome “Bracir” figurava em mapas,
sendo indicado como uma ou muitas ilhas ao Ocidente da costa portuguesa. Outros nomes
confirmam essa tese, pois estudiosos encontram variantes como Brasil, Brazille, Braxili, entre
tantos outros. A questão desafiante remete ao questionamento: “mas não foi devido a
extração de pau-brasil, na fase de exploração da costa (1501-1549), que nos distinguimos
como brasileiros”? Importante não fugir deste dilema. Era comum ao tempo nominar lugares
supostos com termos alvissareiros, assim como as imaginadas “Ilhas Afortunadas”. O
imaginário mítico teria valorizado a brasa (cor vermelha, símbolo do fogo) como tom
purificador – como, aliás, justificam-se as fogueiras da Inquisição. Fala-se, pois, que o encontro
do pau-brasil deu sentido à tradição anterior e não inaugurou uma fase nova.

Montagem da cruz em Porto Seguro, imagem do Museu Nacional

De toda forma, a denominação conveniente ao oficialismo lusitano opunha dois projetos
distintos: um primeiro, barroco, ligado à religiosidade que evocava homenagem ao Lenho
Sagrado, que identificava a “Ilha de Vera Cruz” (Cruz Verdadeira), mais tarde, depois
de constatada a extensão territorial, adotou-se “Terra de Vera Cruz”. O segundo projeto, o econômico, se
impôs na medida do progresso da extração da madeira valiosa. Vale notar certa mescla entre a
proposta religiosa e a econômica, na medida em que a cruz de Cristo teria sido de pau-
vermelho.
Rastro implacável da tradição do Brasil como terra “descoberta”, por acaso, se ligava à lógica
mística do destino, ou seja, cabia a Portugal, por designação divina, cristianizar a terra dos
“selvagens” e isso em compensação às demandas protestantes que dividiam o rebanho de
Cristo. A eventual contrapartida viria pela inclusão do contingente nativo que, afinal, não teria
tido a oportunidade da experiência do “povo de Deus”. Convém lembrar que a ideia de
pertencimento determinava a integração justificadora da noção de Império que, afinal,
cumpria um designo cristão que efetivaria a profecia bíblica que rezava o fim dos tempos com
“um só rebanho e um só Pastor” (João 10: 14-16).
Para razoável compreensão da nossa Independência, cumpre determinar o elo inaugural do
vínculo com Portugal, só assim, depois de tramar propostas capazes de permissão de
autonomias, é possível compreender o sentido da luta emancipacionista. A Independência,
pois, começa com o sentido do nexo imposto pelos conquistadores.