Segundo reza o dito popular, no Brasil o ano começa de verdade depois do Carnaval. As razões para tanto, creio, derivam do excesso de festas acumuladas desde os novembros, passando por exaustivos dezembros e desembocando em tórridos janeiros, fevereiros – e por vezes em março. Como se fosse um divisor entre a ressaca festiva e as responsabilidades cotidianas, as celebrações momísticas fecham um ciclo consequente, sugerindo recolhimento e bom senso.

Um dos brados retumbantes dos novos tempos é definido pela igreja católica que anuncia o período da quaresma, inaugurado com a sobriedade cabível na simbologia da quarta-feira de cinzas. Preside então um ritual carregado de significados que nos livrariam de pecados supostamente acumulados até a terça-feira gorda. Os jejuns apregoados, em particular em relação à metáfora da carne (de onde pode ter derivado o sentido do carnaval como negação de excessos), remetem à gravidade do cotidiano inefável. Ainda na esfera da vida cristã, a campanha da fraternidade é propagada como alerta aos fiéis para conclamas de teores austeros e urgentes. Os chamamentos deste ano são oportunos e bem objetivos, e estão expressos em duas indicações. Sob o tema: Fraternidade e Políticas Públicas, a igreja católica apoia a escolha baseada no lema “serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1, 27). Fica, pois. dado o recado magnificente e ajuizado.

Vale notar que a equipe que elegeu os motes agora assumidos se reuniu para o veredito final divulgado desde agosto de 2017 (portanto, há mais de um ano e meio). O comitê decisório foi composto por um grupo seleto de representantes de diversos segmentos da sociedade, sob o comando da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que reuniu órgãos civis e governamentais como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o Ministério da Justiça e do Trabalho. A decisão foi antecedida de muitas reuniões que deliberam sobre sugestões advindas de dioceses e setores mais específicos da sociedade. No total, para este ano, foram analisadas quase uma centena de assuntos que, reduzidos a sete, contemplaram aspectos referentes à: violência e mortes no trânsito; políticas de comunicação de massa; desigualdade e respeito às diferenças; questões familiares variadas (de aborto a suicídio); acolhimento a desvalidos como imigrantes, exilados, foragidos políticos. Por sintetizar vários polos de tensões, foi deliberado “fraternidade e as políticas públicas”. Note-se que a repetição do termo “fraternidade” foge do sentido pleonástico e ganha foros de indicação política e de formas de participação dos fiéis.

O primeiro impacto dessa escolha trouxe de volta um velho dilema: deve a igreja, num estado constitucionalmente laico, interferir no âmbito político amplo? Sabe-se que desde os chamados anos de chumbo, ou seja, do tempo que nos submeteu à longa noite de 21 anos ditatoriais, foi a liderança católica, entre poucos outros valentes institutos, a que melhor abrigou setores democráticos e deu vez aos insatisfeitos. Por lógico, isso implicou uma nova leitura dos evangelhos e na identificação da face sofredora de um Cristo popular projetada nos excluídos de todos os tipos. De certa forma, o reposicionamento da cúpula católica retoma agora as conclusões do Concilio Vaticano II que, em 1965, apontava a “opção preferencial pelos pobres e desvalidos”, claramente expressa no documento final chancelado por Paulo VI.

Paulo VI

Papa Paulo VI chancela em 1965 o reposicionamento da cúpula da Igreja Católica

A sintomática retomada do viés cristão/político, revela muito da sensibilidade dos dirigentes católicos atuais. A defesa de tantos prejudicados pelo avanço inequívoco de um capitalismo adjetivado como selvagem, novamente, torna-se programa, agora ressaltado em dois conceitos bíblicos pilares: direito e justiça. Tudo isto acontece em ambiente de falsa contradição entre atitudes de outras denominações religiosas, também cristãs, mas que adotam estratégias diferentes. A igreja católica não se apresenta como força legislativa enquanto muitos neoevangélicos se representam como tal. Mas, pergunta-se, o que isto tem a ver com a católica campanha da fraternidade? E a resposta indica a vivência de estratagema diverso. Enquanto os dirigentes da igreja romana tentam conversar com o público por meio das lições dos evangelhos, os neopentecostais o fazem por vias institucionais, formulando-se em bancadas políticas que legitimam suas propostas de cima para baixo. Por certo, ambas se aparelham em termos da constituição, mas por mediações bem diversas.

A campanha da fraternidade exalta dois valores direito e justiça, nesta ordem. As abordagens subjetivas, contudo, pulam do mero enunciado e convocam definições: mas que direito e que justiça: direito e justiça dos homens? É exatamente aí que reside a beleza da escolha católica: sim, direito e justiça dos homens, mas dos homens todos que devem comungar ideias, torná-las opinião pública e, assim, legitimarem-se de baixo para cima. Contradizendo o significado cristão assumido pelos neo-protestantes, não se pretende direito e justiça legislados longe da anuência e participação direta dos fiéis; leis feitas por um punhado de políticos que se dizem representantes do povo, sem lhes devotar autonomia para discussões. Os riscos da temática católica para esta campanha implicam participações conscientes. Para que não exista apenas uma campanha de fachada, torna-se importante o debate aberto, dentro e fora das igrejas, e isso requer que assuma a valentia democrática de uma igreja que se abra para discutir questões essenciais para o futuro.

Campanha 2019

A fim de promover direito e justiça, é básico o enfrentamento de assuntos desafiadores como, por exemplo, o celibato e a pedofilia dentro da própria igreja, descriminalização do aborto como problema de saúde pública, acatamento de segundas núpcias. Se a campanha da fraternidade, de fora para dentro, dos fieis para os políticos, conseguir avançar, alguma resposta será dada. Se não… Que Deus e os orixás nos ajudem.