Os europeus descobriram o uso do tabaco com os indígenas americanos

A data 31 de maio emblema um desafio importante, ainda que não devidamente prezado no calendário mundial: o dia mundial sem tabaco. Assinalar isso, aliás, sugere fósforo que acende uma questão que perturba pela carência de racionalidade e (des)informações históricas. Basicamente, convém lembrar que o tabaco foi “descoberto” na América e que, ao longo dos séculos, vigoraram-se duas formas principais de seu uso: uma mística e outra mercadológica, equivalendo ao que tecnicamente se considera valor de uso X valor de troca. Aquela religiosa e esta econômica.

A primeira alternativa, o uso místico, tem vínculos com questões sagradas e remete ao caráter ritualístico, cerimonioso, das funções religiosas. Nessa linha, alguns aspectos subjetivos sugerem que a fumaça que sobe, rarefeita no ar, seria sinal de ligação com algumas divindades promotoras de transes que se inscrevem na espetacularização das crenças. É então no ritual comunitário que se percebe o fumo como veículo de ligação entre o natural e o sobrenatural. Provocador de uma espécie de êxtase, o uso do tabaco  seria prerrogativa de alguns líderes destinados às funções sacerdotais. Essa aliás foi a forma vista desde os primeiros contatos entre os europeus e os nativos americanos que notaram os indígenas como “homens-chaminé”. Ainda que esse tipo de manifestação persista como prática popular e isolada – onde, por exemplo, são aplicadas as sessões de “defumação” como alternativa para afastar espíritos indesejáveis –, a difusão do tabaco como “mercadoria” ou produto mundano implicou transformação do fumo em artefato industrializado, colocado no mercado em escala global.

 A fumaça promoveria a ligação com algumas divindades promotoras de transes

A segunda forma, pois, remete ao valor “mercadoria”, como produto conjugado a toda parafernália do mercado internacional moderno. A passagem do “uso funcional” para o “mercadológico” equivaleu à submissão da cultura indígena à europeia e isso funciona como metáfora histórica dos usos da colônia pelos metropolitanos. O tabaco, portanto, pode ser avaliado como moeda de troca simbólica do espaço colonizado que teve que render alguns de seus pressupostos culturais para a sobrevivência no orbe capitalista. Se os xamãs/pajés (e depois entidades do candomblé) fumavam – e assim são/eram reputados como tipos especiais em seus segmentos -, mais tarde foram se distinguindo dos demais por meio de uma adjetivação que culmina na formulação conceitual de “tabagistas” ou “fumantes” e chegariam à qualificação de “viciados” ou “dependentes químicos”.

Um negócio que tem a China como um grande cliente

Mesmo sem desaparecer, diminuiu-se muito o teor sagrado do fumo. De toda forma convém não esquecer que existe atualmente cerca de 1,3 bilhão de fumantes em um mundo de 7,874 bilhões de habitantes. É alarmante saber que, vitimados pelo seu consumo, morrem por ano aproximadamente 4 milhões de tabagistas, montante que corresponde a mais de 10 mil mortos por dia. O tabagismo é, entre as doenças evitáveis, a que ocupa o primeiro posto, sendo que seu consumo provoca 85% das mortes por doenças pulmonares. Em relação ao câncer, 30% das mortes são devidas a tal prática e 25% de doenças coronarianas e outros 25% de males cerebrovasculares acometem a população usuária. A mera constatação desses números convida a supor os critérios morais de tolerância do uso do tabaco. Afinal, como um produto tão maléfico é aderido mundialmente? Questionando de outra forma, como pode a sociedade, em escala mundial, ser induzida em tal grau? O trânsito do tabaco o coloca como um dos dez produtos de maior movimentação do globo, com especial destaque no Brasil onde um terço da população adulta ainda fuma.

Há, pois, um enquadramento que reclama cuidados: o paradoxo entre a aceitação da prática tabagista e os avanços médicos que a condenam como vício. Além de não tolerar que se acenda cigarro algum neste dia 31, convém também pensar no cinismo e disfarce moral que cercam nossas leis e costumes. E se alguma fumaça for vista nesse dia, que seja da queima de contradições morais.