Pois é, a Semana de Arte Moderna de 1922 é o assunto da vez. Se o tema é festivo para grande parte da audiência interessada em arte e literatura, para outros é desafio que mexe com o bom senso analítico e com a reserva de argumentos críticos. E vou logo abrindo o jogo, pois mesmo sendo cauteloso frente àquele evento, não consigo despregar certa admiração comum aos que só fazem aplaudir a turminha que, de modo diverso da rotina, alardeou o carnaval de 22. Para o bem ou para o mal, reivindicando liderança e prestígio, foram os arrogantes dandies reunidos naquela São Paulo que se propuseram a acertar os ponteiros do nosso relógio cultural, então descompassado do resto do mundo dito civilizado.

Não resta dúvida alguma que o espalhafatoso barulho em torno dos acontecimentos iniciados no fatídico dia 13 – e repetido dia 15 e 18 – potenciava veneno poderoso contra o passadismo cultural, identificado na tradição parnasiana e na literatura puxada à Coelho Neto ou Olavo Bilac. Sob uma pauta analítica, porém, cabe jogar luzes em complexidades que convidam definir a partir de quando, onde, e por quanto tempo vigio a tal modernidade dos modernistas. E falamos de modernismo ou de modernismos?

Fermentando argumentos, propõe-se estabelecer a diferença entre modernidade e modernismo. Entende-se por modernidade – no caso da cultura brasileira dos inícios do século passado – o processo de atualização das expressões de vida sociocultural, formatado segundo conjeturas hegemônicas, colonizadas no sentido da leitura do mundo no pós-Primeira Guerra Mundial. Modernismo, por sua vez, seria um movimento específico, produção articulada, síntese crítica e teatral do patrimônio herdado, submetido a um programa arbitrário de renovação radical. Dizendo de outra forma, a Semana corresponderia à oficialização dos fundamentos modernizadores sempre em curso, ainda que difusos e sem fundamentação teórica conceitual.

A diferença crucial entre modernismo e modernização decorre da consciência e aplicação de pressuposições estéticas assumidas racionalmente e derivadas de regras sobre a superação de tudo que estava estabelecido como valor artístico. A mera qualificação dessas diferenças suscita três rotas significativas para a compreensão da Semana de Arte Moderna: 1- o recorte paulistano; 2- a espontaneidade do movimento, e 3- a recepção das propostas de pretensões revolucionárias.

Tarsila do Amaral, autora do Abaporu, é o símbolo da arte moderna no Brasil

O primeiro ponto a ser considerado na definição do espaço modernista remete à sua paulistanidade, ou seja, à centralidade na/da capital do estado. O argumento sustentado pelos defensores da vanguarda paulistana por certo vai além dos valores assumidos localmente, condição que consagraria aquele evento como uma espécie de modelo referencial da nossa produção artística. Muito mais que arte, porém, fala-se da liderança política e do poder econômico que a São Paulo dos imigrantes – e da nascente indústria – passava a ter na Federação. Neste sentido, a reputação de moderno caberia como virada de um passado colonizado, agrário, dependente de continuidades vencidas.

Um segundo ponto importante para o entendimento da Semana exige medi-la em sua temporalidade. Se recortados aqueles dias como detonadores do longo processo seguinte autenticar-se-ia a liderança paulistana sobre um andamento corrente – muitos percebem o início em 1917 e como ramificação de atualizações europeias. Seria então a Semana um produto, momento justificado localmente, ou expressão de procedimentos que já vinham acontecendo cá e lá? Ou será que, no recorte brasileiro, o tempo paulistano daria conta de incluir outros espaços, em particular o Rio de Janeiro, Minas e Pernambuco?

O terceiro argumento significativo implica entender a projeção do Movimento no devir histórico, posto que passadas as consequências estéticas imediatas – o advento dos Manifestos e das Revistas – o que se viu foi a reclusão dos argumentos que apenas refloresceram depois de 1945 com a morte de Mario de Andrade e principalmente durante o regime militar que precisou de uma base nacionalista, e assim buscou inspiração naqueles pressupostos. Mais tarde, descaracterizado de políticas, depurados os personagens escolhidos como baluartes, valorizado o teor festivo/artístico, apenas recentemente a Semana se notabilizou formulando uma pauta vista agora com destaque.

O saldo da reflexão presente, nesta sonora celebração do centenário da Semana de Arte Moderna, convida à retomada histórica do evento e de suas possíveis novas abordagens. Sem incorrer em revisionismos fáceis, o que se busca é a quebra de pressupostos dominantes e valorizar outros ângulos capazes de projetar a Semana como uma oportunidade para a problematização de questões indagadoras do papel, da função e alcance da cultura nos dias de hoje. E fico pensando como ela será vista depois deste seu centenário.