ou

MEDITAÇÕES SOBRE ESTUDOS DE CAROLINA MARIA DE JESUS

Não dá mais para adiar o enfrentamento do polêmico axioma expresso no título deste desabafo. Não mesmo! E torna-se difícil contornar a indignação paradoxal que exige, antes de mais nada, a liberdade de expressão e o direito de crítica. São anos de pesquisa – pelo menos 35 – que resultaram estudos vertidos em quatro livros e mais de 50 artigos (alguns inclusive traduzidos para cinco línguas estrangeiras). Remeto-me aos trabalhos ligados à Carolina Maria de Jesus, escritora que rasgou cânones e desestabilizou certezas sobre o conceito literatura, mobilidade social de segmentos marginalizados, e que assim mexeu com o prestígio identitário brasileiro como um todo. Antes da mineira que transitou em vários níveis da excludência, poucas vozes testemunhais, comprometiam a positividade de um país culturalmente arrumadinho e exibido sem preconceitos explícitos e crueldades raciais.

Maria Carolina de Jesus autografando livros no Instituto Moreira Salles

É preciso dizer de saída que perfilo entusiasmado a crescente onda de defensores de reparações históricas em favor de indígenas, negros e de vulneráveis de todos os matizes. Nesta linha, aliás, sinto-me convidado a saudar as cotas universitárias, de trabalho, de representação parlamentar. Todas as cotas são oportunas. Compomos sim um país injusto, cruel e elitista que precisa revistar suas políticas de integração. Endosso pois atitudes condizentes com as pautas progressistas listadas nas agendas ativistas dos direitos humanos. Isto, aliás, serve de introdução ao argumento do direito de fala. Sem exceção, cada pessoa ou segmento deve se manifestar. Muito mais que lugar, todos tem direito de expressão.

Perfilo princípios que se assentam em um pressuposto democrático elementar: o reconhecimento e a valorização da diferença. De todas as diferenças. Busco perfilar-me entre aqueles que percebem a democracia como espaço coletivo, sobretudo com reconhecimento e respeito aos socialmente desiguais. Na evidência do significado da diferença emendada na equiparação, ou no direito de oportunidades sem distinções, me coloco na luta que afina a interação de pretos com brancos, de mulheres com homens, de detentores da educação formal com os não privilegiados. E isto não é mera preferência, é luta. É opção consciente e dever intelectual que impõe argumentos.

Uma das mais aclamadas autoras da crítica literária, a indiana Gayatri Chakravorty Spivak assinou um texto intrigante, justificado no universo teórico da pós-modernidade global. Em artigo de 1985, delineou o corrosivo dilema afeito às relações de classe sociais e suas expressões. Sob o título “Can the subaltern speak?”, publicado em português com o título “Pode o subalterno falar?”, a autora apresenta um argumento que atinge em cheio as expressões identitárias no que ficou conhecido como “direito de fala”. Com apelo moral sobre a autodeterminação, a premissa spivaquiana busca responder o dilema da representação e da autoria de visões pessoais, particularmente em vista do direito à própria experiência. A competência, o treinamento técnico, o domínio de fortunas críticas filtradas por séculos de cuidados filosóficos, tudo, absolutamente tudo, ficaria angulado pelo direito – dever mesmo – de todos se enunciarem. Como se uma atitude anulasse a outra, na insensatez da busca de compensação da marginalização efetiva, radicais apagam trajetos de quantos percebem na cultura e na ciência ideais de aproximações que, ironicamente, podem favorecer diálogos desejáveis e mudanças políticas viáveis.

Gayatri Chakravorty Spivak, crítica literária indiana

Sob a vista do conhecimento universitário, o problema é complexo e político. Complexo porque tange questões que se fundamentam na essência libertadora do saber crítico que deve ser revisto sempre. Complexo porque toca na subalternidade de quem fatalmente sente-se visto e explicado pelo outro, não por si ou por seus “iguais”. Emerge deste axioma uma questão moral de consequência grave. A história entra como fator matriz na constatação de que a norma culta, o preparo aprimorado e os meios de produção de resultados acadêmicos têm sido dirigidos por uma minoria branca, elitista, selecionadora do que deve, pode e é divulgado. Isso como se não houvesse desvios. A consciência da subalternidade aqui funcionaria como denúncia de injustiças estruturais que, afinal, aparelham uns e desqualificam outros. Uns seriam os explicadores capacitados, únicos, e os demais apenas motivo de observação, coisificados como objeto de estudos.

É lógico que numa projeção futura – otimista e distante – o problema aflitivo projetado na diminuição das desigualdades tenderá ao alívio das distâncias. Ainda que esta perspectiva caiba melhor no campo da utopia, é de se motivar passos garantidos pelas políticas afirmativas. Enquanto isso não acontece, contudo, cabe verificar a correção de rotas que, se corrigidas, podem ajudar a causa democrática, integrando o almejado direito de todos se contarem em histórias silenciadas.

Vivo um dos mais dramáticos dilemas de minha vida acadêmica. Perfilando-me entre os pioneiros da recuperação da imagem de Carolina Maria de Jesus na cena pública brasileira, padeço esforços de exclusão que, com toda segurança, enfraquecem a recepção da obra daquela autora que precisa ser vista, lida e assumida como causa de todos, não apenas de um grupo que se apropria de seu legado valendo-se das mesmas armas usadas por quem as refuta. Volto à saudação do direito de fala – não do lugar de fala – e reivindico diálogos úteis ao entendimento democrático do saber. É preciso distinguir valores culturais e buscar algo que não seja reduzido a “racismo reverso”, “machismo intelectual”, “perda de poder”. Nada disso. De minha parte, não cederei um milímetro em favor de conformações. Pelo contrário, continuarei buscando parcerias e construindo pontes que liguem o que de melhor a cultura pode oferecer: diálogo instruído e aberto.

Anuncio, em favor de estudos sobre Carolina Maria de Jesus, três livros que virão endossados pela Editora Ática. Tudo em favor da garantia de que homem branco e acadêmico pode sim falar de mulher negra e de baixa formalidade educacional. Fora excludências dispensáveis, viva a causa democrática absoluta, em particular a favorecida pela cultura acadêmica. Vamos continuar a luta pela garantia de uma educação pública aberta a todos. E que Carolina Maria de Jesus sirva de elo de união, revertendo assim a repetição do que tem sido praticado na excludência em especial de mulheres negras.