Na contramão das bobagens que se diz sobre a “eterna juventude”, faço ecoar Nelson Rodrigues sugerindo virtudes no amadurecimento. Não se trata de algo panfletário, diga-se de vez. Não mesmo. Esconde-se por traz do conselho “envelheça logo”, mais do que a usual picardia rodrigueana. Muito mais. O avanço da idade como sabedoria é lição solene, contradição absoluta de balelas do tipo “melhor idade”, “vinho velho é mais gostoso…” Mas como saber qual o momento da virada? Como, se manuais não existem? E debelo a simplificação da vida contabilizada em duas parcelas opostas que elencam a soma de acertos X erros. Sempre meditei a esse respeito e foi assim que me vali de uma trilha dada por Oswaldo Montenegro na canção “Metade”, e em minha melhor metade interior identifiquei a explosão existencial contida no verso “porque metade de mim é partida/ mas a outra metade é saudade”. Explico-me…

Nelson Rodrigues sugeria envelhecer logo

Aprendi atribuir à passagem dos 59 para os 60 anos o marco divisor de minha existência. Sim, como se sinalizasse uma fração quimérica e não medida em cronos, fazer 60 anos me equivaleu à mais séria decisão sobre meu devir. A carreira do pretérito, perfeito ou imperfeito, exigiu ponderações existenciais, que, afinal, ajudaram supor uma parada, algo como um respiro bilacquiano no tal “mezzo del camim”. Metade idílica sim, porque pode-se imaginar bons anos de uma velhice anunciada depois de um passado fora do script esperado. E bem-aventurados os podem optar entre ser um ancião desses “legaizinhos”, velhinhos bons, com riso no olhar experiente e plenos de casos para contar. Quem não ousa acatar a quebra do tempo, em oposição, haverá de ser daqueles vovôs curtidos em ranzinzices, velhos chatos, pesados, reclamões. E sabem o que é pior nesse jogo da vida? Alguns nem notam e vivem continuidades sonâmbulas.

No meu caso, a fração se deu em dado momento, na exata passagem dos 59 para a os 60 anos, precisamente na véspera do meu aniversário. Por lógico, esta ponderação não veio gratuita e isto aliás carrega uma historinha com ares de pretenciosa. Conto: naquela virada da noite em que completaria minha sexta década, resolvi fazer uma pesquisa sobre pessoas nascidas no 15 de março e foi assim que (re)encontrei Oswaldo Montenegro – claro, muito mais jovem, vindo ao mundo em 1965. Vasculhando um pouco a vida dele soube que em 1999 havia escrito uma outra canção que mesmo extraída de um contexto mais amplo, mexeu definitivamente com minha sensibilidade.

Lista” é nome da peça e isso foi disparo para uma decisão que tomei exatamente naquela investida: fazer uma declaração de amor à minha própria história e assumir meu juízo sobre quem e com quais coisas queria pavimentar o resto de meus dias.

Drummond dizia que a felicidade está numa caixa de bombom

Com a “Lista” em mente, como que prestando conta a mim mesmo, olhei meu plantel de parentes e amigos e quase que rezando fiz “uma lista de grandes amigos”, pessoas que “mais via há dez anos atrás”, e seguindo o andamento do bardo me perguntei “quantos você ainda vê todo dia/ Quantos você já não encontra mais?”. Fiz uma brincadeira íntima e me dei autoridade para semanas depois dar dimensão ao tal envelhecimento rodrigueano.

Inventei um motivo, lançamento de livro, e para a solenidade fiz o que devia: separei de conhecidos casais, só as unidades queridas; deixei de fora os indesejados oficiais, pessoas com as quais convivia sem tanto (ou nenhum) querer; pessoalmente, dispensei três “autoridades superiores” e lhes disse, olho no olho, o que sentia a respeito de cada situação opressora vivida; respondi a duas cartas que amargavam silêncio e soltei o verbo libertar na base do “não quero nunca mais”.

Houve algo complementar e de vocação sublime, pois, sobretudo, escolhi tentar ser melhor com conta acertada sobre o trajeto já cumprido. Devo dizer que não cheguei à perfeição alguma. Não, não, não, mas desde então estou progressivamente mais tranquilo e cultivo a generosidade como virtude mais exigente de meu lugar no mundo. No mais, vivendo as graças de ter respeitado os mandamentos dos 60 anos, retomo Drummond ao dizer que “há duas épocas na vida, a infância e a velhice, em que a felicidade está numa caixa de bombons”, estou saboreando minha guloseima anciã como gosto de decisão e coragem.