É muito estranho escrever no dia do próprio aniversário. Muito mesmo, diga-se. Sei lá o que significa “apagar as velas”, mas, a cada dia parece algo mais temeroso. “eu dizer dos cumprimentos que apelam para ‘mais uma primavera’, em particular quando se aniversaria em plenas “águas de março, fechando o verão”. Seja como for, assumir a idade implica balanços sobre o existir e isso remete a zonas filosóficas conturbadas, obscuras e nem sempre nítidas.

Invejo aquelas pessoas que nem ligam para o pretérito e seguem vivendo como se a existência fosse mais presente e futuro do que passado. Mas, sou dos “outros”, dos que acham que o passado é o presente ainda não acaba do e que carece de desdobramentos. Engrosso a linha dos que acham que tudo continua e que não há capítulos findos ou desconexos. Sendo assim, viver o aniversário é como mergulhar em si mesmo, no momento mais solene do ano e exposto aos olhos de quantos nos cercam, familiares e amigos. E, desta forma, não há como fugir dos juízos que exigem algumas respostas fundamentais como tem valido a pena viver?

Por favor, não pensem que estou melancólico, imbuído de pessimismo ou algum mal presságio. Nada disso. Gosto do meu envelhecer. Assim, devo esclarecer de saída que não temo a minha morte. Pelo contrário, sem venerá-la, quero sentir seu abraço fatal quando chegar a minha vez. E que seu beijo nos seja consciente, pleno e se possível delicado. Acho que não lutarei pela vida, além do que ela já terá sido. O que me perturba muito é ver a morte alheia cada vez mais frequente. E como elas se multiplicam sem cuidado em ferir os que ficam.

Sebe, Renato, Marmo e PT

Mestre Sebe, Renato Teixeira, professor Marmo e Paulo de Tarso em aniversário do CONTATO

 

Medindo a fila que não cessa de aumentar, fico meditando sobre o sentido da existência em suas marcações impostas pela sina do calendário que vai, do seu jeito, escolhendo quem será o próximo. Pensar em quantos nos deixaram é como medir a vida pelos que se despediram antes e que, em recordações esfumaçadas, vão se distanciando, de deixando esquecer. E, assim, não há como legar ao abandono a relação de tudo com o movimento voraz da vida e com o que realmente significa a morte. Sim, morremos de verdade quando ninguém mais sabe de nossa existência. O passado é muito rápido, muito ligeiro, e vai comendo reminiscências que, estas sim, envelhecem sem preocupação com qualquer futuro.

Não vou pôr em discussão a existência ou não de vida depois da morte. Como historiador, sei que deveria estar mais preparado para perceber o declínio de tudo. História é a luta pela legitimação da memória, pelo reconhecimento do sinal das coisas que devem ficar. Mas na seleção do que valeu, obrigatoriamente, mitiga-se o que é fátuo e viramos, no máximo, saudade. Aprendemos nessa lição o sentido de nossa insignificância. E então perguntamos: quem há de se lembrar de nós? Até onde alguém vai saber do sentido que procurei dar à minha experiência? Por quanto tempo perdurará nossa recordação?

entre livros

José Carlos Sebe Bom Meihy, sempre cercado de livros

          Quando olho a história de minha família, vejo pálidos vestígios de pessoas que foram heroicas, mas das quais pouco sei ainda que tenham sido gente brava que atravessou o oceano e plantou a vida no Brasil, pessoas que lutaram contra a pobreza absoluta, que rasgaram estatutos identitários originais e que sobreviveram aprendendo outras línguas e costumes. Por certo, sou-lhes grato e reconhecido, mas, quando medido o desconhecimento que tenho de meus bisavôs, fico perplexo e relativizo a vaidade de minhas toscas conquistas. De que valeu a façanha de nossos antepassados se deles as memórias vão se apagando. Certamente, meus netos terão pálidas lembranças de minha passagem e formação familiar. E é bom que seja assim, pois seria mais difícil viver se as lembranças insistissem mais em montar praça.

A depuração destas meditações indica algo importante: tenho que amar mais os seres que animam meu viver. Entendo melhor agora, mais velho, o sentido da vida que pulsa no reconhecimento da partilha da vida. Nesta direção respondo a pergunta sobre a força do existir: sim, está valendo a pena, tanto que registro isto nesta crônica escrita em saudação aos parentes, amigos e pacientes leitores.