Quando o Programa Nacional estiver funcionando normalmente, aí vai aparecer o imunizante no sistema privado

Vamos falar francamente: ainda neste ano, mais para o segundo semestre, hospitais e clínicas particulares estarão oferecendo vacina contra a Covid-19, em caráter suplementar ao Programa Nacional de Imunizações — e tudo de acordo com a Constituição.

Um pouco de história: a Constituinte de 1988 tinha um viés claramente estatizante. Por isso, temos o Sistema Único de Saúde — e o “único” aí não era apenas um modo de falar. A ideia era essa mesma: um sistema estatal, universal e gratuito. E obrigatório, vetando a medicina privada.

Ulisses Guimarães ladeado por Marcelo Cordeiro e Mauro Benevides com a Constituição Cidadã

Só não ficou assim por dois motivos. Primeiro, porque seria preciso estatizar hospitais, clínicas e mesmo consultórios privados. E não havia dinheiro para isso — já que não se poderia simplesmente confiscar tudo, como se fosse uma ditadura

O segundo motivo vai na mesma linha: teria o Estado os recursos necessários para esse sistema gratuito? Está lá no artigo 196: que a “saúde é direito de todos e dever do Estado” e que será garantido “acesso universal e igualitário”.

Reconhecendo isso, os constituintes incluíram o artigo 199, dizendo que a assistência à saúde é “livre à iniciativa privada”. Como isso estava em contradição com o contexto, colocaram-se várias ressalvas: essa atuação seria “complementar” e controlada pelo SUS, seria vedada a empresas estrangeiras e se daria preferência às instituições filantrópicas em relação àquelas com fins lucrativos.

O entendimento dos estatizantes era simples: com o tempo, dada a qualidade e gratuidade do SUS, o sistema privado desapareceria ou ficaria apenas para os poucos milionários.

O mundo andou, e como estamos hoje? Mais de 40 milhões de contratos particulares com planos e operadoras de saúde, muitas de capital estrangeiro. E um sistema privado de qualidade internacional.

Isso já funciona no caso da Covid-19. Os hospitais e clínicas particulares atendem os doentes e aplicam os testes. Aliás, os altos dirigentes da República se tratam nesses hospitais.

Por que, portanto, não podem vacinar?

Por questões econômicas, éticas e políticas. Na economia: ainda há escassez de vacinas em relação à demanda mundial. As farmacêuticas que já têm o imunizante estão vendendo apenas para governos e instituições multilaterais, como a OMS. A entrada do setor privado no negócio, no mundo, aumentaria ainda mais a demanda e elevaria os preços. Assim, se cairia onde os líderes mundiais de respeito tentam evitar: que os ricos passem na frente.

Angela Merkel, um modelo de liderança na Alemanha e União Europeia

Mas, para falar francamente, de novo, ricos, no cenário mundial, estão tentando passar à frente. A União Europeia encomendou 400 milhões de doses à AstraZeneca, para entrega neste primeiro trimestre. A farmacêutica avisou, nestes dias, que não conseguirá entregar nem metade disso. Qual a reação de parte dos líderes da União Europeia? Proibir a AstraZeneca, que tem sede na Europa, de exportar sua vacina antes de atender a toda a demanda da comunidade.

Ainda bem que líderes como a alemã Angela Merkel se opõem ao que consideram falta de solidariedade global.

Mas veremos.

A questão ética vem na sequência. Não se podem vacinar os ricos, aqui e lá fora, antes dos grupos prioritários, pobres ou não.

A questão política decorre das anteriores. Claro que os hospitais e clínicas privadas, assim como as grandes empresas, poderiam estar no mercado comprando vacinas, se é que já não o fizeram. Mas não estão querendo vacinar neste momento justamente por temor da reação da sociedade, dos clientes e dos parceiros comerciais.

Tudo considerado, no momento, no Brasil e no mundo, cabe aos governos comprar e aplicar as vacinas, seguindo a fila dos mais para os menos vulneráveis.

Não há problema onde os governos estão cumprindo isso. Não é o caso do Brasil. Como o governo Bolsonaro desdenhou a doença, está muito atrasado na busca dos imunizantes. Se não fosse o governo paulista, tudo o que teríamos seriam dois milhões de doses vindas da Índia.

Saída de momento? O setor privado financiar o público e, sobretudo, apoiar na organização. Quando o Programa Nacional estiver funcionando normalmente, aí vai aparecer a vacina no sistema privado. E se o governo nem assim conseguir vacinar? Aí os mais ricos vão se vacinar à sua maneira.