Para Isa Márcia

Ernest Hemingway é figura importante no topo de minhas preferências. Seguramente, “O velho e o mar” disputa primazia entre os cinco textos mais solares de tudo que li. A façanha do velho Santiago que aos 84 anos, solitário, fisgou um marlim gigante – de cerca de 5 metros e 700 quilos – é das proezas mais arrebatadoras que conheço. O prestígio desse livro foi tamanho que o fez merecedor do Nobel de Literatura em 1954.

Na intimidade de quem tem exposto o coração de leitor, devo confessar um segredo: não sei se sou mais devoto da obra de Hemingway ou de sua conturbada trajetória. Sendo desde menino pessoa singular dado o neurótico trato maternal – que o considerava menina – e a intensa ligação com o silente pai com quem mais conseguia se ligar nas aventuras de caça e pesca, cresceu marcado por dilemas de autoafirmação. Vale lembrar que seu pai, manuseando arma de estimação, disparou-a ferindo-se mortalmente e, mais tarde, num gesto de difícil explicação, a própria mãe enviou ao filho, de presente, a fatídica pistola.

E um rosário de frustrações aturdiu a vida do moço que, baixo demais, foi refutado pelo Exército na tentativa de se tornar soldado na Primeira Guerra, fato que agravou seu temperamento depressivo e o fez chegado ao álcool e ao fumo. Seu refúgio era a escrita sempre concisa e objetiva, profunda e introspectiva. Publicamente, era reconhecido como machista e, mulherengo, se casou quatro vezes, além da coleção de amores bandidos. A este respeito, aliás, seu colega escritor Scott Fitzgerald profetizou uma frase: “você vai precisar de uma mulher a cada livro”. Mas não foram as mulheres as únicas paixões do constantemente infortunado que, afinal, se suicidou em 1961.

Seria difícil escolher qual o feito mais bizarro de Hemingway: a insensata audácia nos campos de batalha da Espanha na Guerra Civil onde atuou como repórter de guerra; o combate incansável contra o nazifascismo; a inacreditável experiência como toureiro, ou as peripécias como piloto? Dono de barba e bigode caprichosamente cultivado, gabava-se de ser o melhor atirador de toda Cuba, terra que adorava e onde morou até que o embargo norte-americano exigiu a retirada de todos os cidadãos estadunidenses depois da Revolução castrista. Afastado de Cuba, escolheu a cidade de Key West na Florida como local para residência por ser aquele o ponto mais próximo da Ilha de Fidel.

Pois é, em seu lar no extremo sul dos Estados Unidos, Hemingway recebeu de presente de amigo marinheiro uma gatinha a que chamou Snowball. Na realidade, a paixão do escritor por animais era conhecida. Teve vários cachorros e pássaros, mas nenhum bichano angariou tanta simpatia como a gata que, aliás, tinha uma característica distintiva: era portadora de uma anomalia rara, polidactilia, isto é, tinha seis dedos em cada pata que, segundo uma tradição corrente, era sinal de sorte. De tal maneira Hemingway cultivou o amor a Snowball que a colocou em seu testamento, definindo verba especial ao cuidado dela e de seus descendentes, que mantém até hoje. Com o tempo, a casa vitoriana de Hemingway virou uma espécie de museu, conservando detalhes como ele os deixou. Lá, tudo é estático, mas a quebra pelos inúmeros gatos dá uma estranha vivacidade ao ambiente.

Entre as várias referências escritas deixadas por Hemingway sobre gatos algumas dizem de sua magnitude amorosa:

  • Um gato tem honestidade emocional absoluta: os seres humanos, por uma razão ou outra, podem esconder os seus sentimentos, os gatos jamais;
  • Os gatos são criaturas grandiosas porque não esperam que os humanos o sejam;
  • Creio que os gatos são espíritos vindos à Terra. Um gato é um ser humano disfarçado, só que não perturba a paz alheia;
  • Não há nada mais grandioso e arrebatador do que um gato lutando contra algo que não existe, vale a pena viver para contemplar essa visão;
  • Os gatos sempre sabem se as pessoas valem ou não. Com frequência, simplesmente decidem não gastar seus afetos com qualquer um.

Há algo intrigante na escolha de Hemingway pelos gatos. Mesmo decantando outros animais, foram os felinos domésticos que primordialmente capitalizaram seu afeto e como ele dizia “me traduzem”. Quantos conhecem as marcas temperamentais do grande escritor podem imaginar porquês. Diria que há um fator maior explicativo dessa preferência, a síntese de tudo que o autor pretendia: ser acolhido e, no aconchego, ser amado. Ser amado como foi sua Snowball.