Quase tudo hoje é descartável. A sociedade de consumo impõe decisivo culto a tudo que é novo, e a tal ponto insiste-se nisso que valores afetivos são quase zerados. Tudo, no mundo externo, tem que estar estalando, inédito, recém produzido, new blend. “Nos trinques” é reconhecimento do padrão consumista que tine aos olhos de uma opinião pública que nos julga pela aparência, sem levar em conta referentes de nossa história pessoal.

Sim, persistem resquícios de antiguidades, mas poucos, e esses apenas logram sentido quando validados no âmbito privado. Para o grande público, o que triunfa é sempre o porvir; o resto é, na melhor das hipóteses, “coisa de museu”. A loucura é tamanha que, alimentando o giro do mercado, até reinventam-se passados que, na ausência de alguma substância, autorizam simulacros: sim, temos um novo pretérito fabricado, objetificado em santos, oratórios, peças, adornos.

Não bastasse a profusão das novidades impostas, há uma consequência fatal decorrente da mania de renovar: a ameaçadora multiplicação de entulhos. E então o lixo progressivo se impõe como tragédia em processo. E desenvolve-se uma rotina que torna tudo descartável, sem dignidade alguma, algo disposto a ser jogado fora porque inevitavelmente superado. E assim, sem assumir isso como algo condenável, criamos um problema social de proporções convenientemente pouco ventilado. Não me escapa desta reflexão a ficcionada “Leônia” de Ítalo Calvino, uma daquelas eloquentes “Cidades invisíveis”, onde todas as coisas usadas viravam detritos descartados cotidianamente. E então as montanhas de restolhos tornando-se volumes aterrorizantes, produzindo insuportável odor.

Sabe, mesmo nos devotos de modismos parece que há algo de resistente ou medrosamente crítico. Assistimos e somos levados a participar do movimento global que afinal sustenta mercados e nos promove a fazedores de lixo, mas creio que, sem se revelar, em cada qual reponta um sentimentozinho de culpa. É inequívoco, mas domesticamos uma desconfiança que não nos deixa corromper de todo. É como se um último toque divinal obstruísse a leviandade da tal onda assoladora. Vali-me dessas considerações como preâmbulo para pensar no que é menos transitório em nossas vidas, naquilo que preservamos além da delinquência consumista.

Segredo: tenho algumas poucas caixas guardadas com lembranças das quais não abro mão e não admito pensá-las como porcarias. Estranho ter mantido pequenos recortes de bons momentos: ingressos de cinema, santinhos, até a primeira multa de automóvel, o primeiro dente caído de meu filho… Dia desses, me peguei paralisado com o comprovante de compra da minha primeira máquina de escrever; chorei com um pequeno frasco de perfume, vazio, de minha mãe. E o lenço que meu pai usava na lapela do terno perfumou de tal maneira minha memória que me sugeriu um não lugar lógico. Sim, sou levemente acumulador. Coisas poucas, mas aprendi a colocar tanto afeto nos detalhes que delego verdade ao ditado alemão garantidor de que “o diabo mora nos detalhes”. E esse pequeno arsenal de lembranças me constitui além de modernidades.

Meditando sobre minhas “velharias”, fiquei me perguntando do significado dessas coisas. Por que não me desfiz de tantas tranqueirinhas? Indo mais fundo, me inquiro sobre o depósito de afetos represados em situações que certamente, aos outros, parecerão bobagens, algo que deveria ter ido para alguma lata. Sabe, preside então uma sensação de generosidade à vida. Como se fossem objetos biográficos, minhas saudades ficam materializadas em fragmentos tão tolos, tão sem valores transcendentes. Dói em pensar que um dia tudo aquilo, aquelas coisinhas tão zelosamente seletadas não significarão nada para ninguém. Foi pensando nisso que resolvi fazer um pequeno inventário de meus tesouros emocionais.

Comecei um texto/testamento dizendo que sei que quando eu morrer irão desprezar aquela fita azul, envelhecida, da vela da minha primeira comunhão, o guardanapo de borda amarela da primeira pizza que comi com aquela que seria minha eterna namorada, a medalha que ganhei pela melhor redação da escola… Dei início, mas parei quando uma questão brilhou forte: quem irá ler isso? E então me veio a noção da modernidade: quem lerá isso?… Parei. Amassei o papel. Devolvi os “restos” aos lugares e jurei garantias pessoais: enquanto eu viver, tudo aquilo não será lixo. Nostalgias…