Às vésperas do julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mestre Sebe faz reflexões a respeito da palavra mais proferida em 2017

Não foi surpresa saber que a palavra mais proferida, em todas as mídias, no ano de 2017 foi “corrupção”. Como efeito natural que nos envolve e atinge, entendemos mecanicamente o que ela é o quanto nos custa. Decorrência imediata de intuições defensivas, sequer questionamos significados mais profundos, e nem nos preocupamos com definições e conceitos. Ato ilegal, quadrilheiro, danoso a todos e, pronto, temos pressupostos que nos permitem rejeições cabais. E não é necessário grande exercício para notar que esse mal dissimulado fere tragicamente o bem-estar social, colocando os atingidos em situação de prejuízos consequentes. Corruptos, contudo, sempre são “os outros”, “eles”, ‘políticos”, pessoas que, por contraste, não se igualam a gente. Tudo como se nada tivéssemos a ver com isso. Essa percepção que pode ser aquilatada em todos os quadrantes do universo, contudo, tem características culturais peculiares, que requerem cuidados interpretativos segundo seus jeitos locais. Não basta ser contra “eles”, precisamos saber porque existem e como sobrevivem conosco.

Filhos

Especialistas no tema, em particular quando filtram análises pela ótica antropológica, notam variedades que ajudam entender o fenômeno e sua maior ou menor aceitação ou resistência públicas. Um passo importante na direção de melhor juízo sobre a corrupção implica, por exemplo, notar que ela é mais incidente em países de origem católica do que protestante. Segundo historiadores, o confessionário, o perdão e a remissão dos pecados, ajudam a tolerância. Há também aqueles que notam a hierarquia católica como facilitadora de práticas corruptíveis e, ao contrário, a responsabilização protestante como mecanismo de controle pessoal e público. Também é notado que entre os orientais – em particular no Japão – a corrupção é menos frequente e os casos descobertos resultam em grande vergonha pública levando até a suicídios. Na mesma linha, é sabido que em países escandinavos tem-se pouca notícia dessa prática, fato que permite supor que em lócus menos povoados e com média econômica mais elevada tais situações são quase inexistentes. Lamentável avaliar que a África e a América Latina se figuram como espaços mais danosos.

compra de votos

A provar a ameaça da corrupção como um vírus letal e progressivo, de alcance ampliado desde o fim da Segunda Guerra, têm sido criadas entidades de alcance internacional, como a Anti-Corruption Agency (ACA) que visa pôr em evidência o problema em escala internacional e assim promover combates. Sabe-se que muitas empresas europeias, de países como a Holanda, Suíça, França ou Suécia ainda que tenham controles internos, atuam de maneira sorrateira em outros estados, mais vulneráveis. A fim de disseminar o combate a corrupção internacional, anualmente é publicado um relatório detalhando essas manifestações escusas – o Business Environment and Enterpriese Performance Survey (BEEPS) – que é complementado por outro programa o Corrupt Perception Index (CPI). Juntos esses são alguns dos medidores internacionais que previnem e alertam sobre o mal. Há outros mais que insistem em denunciar o crescimento do fenômeno sob a égide da globalização, mas por mais que se multipliquem, serão poucos se não houver melhor compreensão do fenômeno em suas culturas.

De exemplo

A maior dificuldade em se estabelecer um conceito-parâmetro para a corrupção diz respeito às tradições de cada local. Mesmo no Brasil, além de se reconhecer que a corrupção é histórica, sabemos que nessa mania escandalosa se liga a práticas como: compadrio, clientelismo, coronelismo e às relações parentais modernamente chamadas de nepotismo. Antes de supor ligeiramente que tais hábitos são superados, ou coisa do passado, convém admitir atualizações e sua institucionalidades políticas. A complicar precisões definidoras, ainda presidem fórmulas que excedem o exclusivismo do dinheiro como mecanismo de recompensa salteadoras. As premiações pecuniárias, barganhas de presentes, comprometimentos variados e promessas futuras integram o pesado pacote que sempre que descoberto vem acompanhado de justificativas sutis e falaciosas. No Brasil tornou-se comum a generalização das graças obtidas por meios ilícitos da corrupção sintetizada no termo “propina” e ligada a ajudas de campanhas políticas, ou facilitação nas concorrências públicas.

Detalhes dessas ocorrências, porém merecem reflexões que vão além do fato denunciado. Temos que lembrar que nos ufanamos de ser o “país do jeitinho”, da “cordialidade” e da “democracia racial”. A consciência histórica desses mitos é construída para justificar uma pseudo tolerância e harmonia de classes que, afinal, reclama requalificação. Queremos sim justiça, mas mais do que ela, precisamos rever nossos juízos sobre nós mesmos e os usos levianos de atributos que vistos pela ordem republicana causam avarias irreparáveis. O que se espera destas situações dramáticas é que olhemos um pouco mais e melhor para nosso passado histórico e requalifiquemos o que significa para nós no Brasil, corrupção. E não basta pensar que soluções advenham de governos autoritários ou de novas eleições. Muito mais do que isso, temos que requalificar nossa história e vê-la de maneira mais crítica, menos bonitinha, engraçadinha, jeitosinha. Somos o que somos, temos o que temos porque assim nos fizemos historicamente. Conheçamo-nos melhor e ponhamos um fim nos mitos jeitosinhos. A cordialidade tem limites e a corrupção está aí para provar.