Difícil contar o que senti com a troca de cenário do Zé Celso Martinez, afastado de nós no dia 6 último. Nem vou especular se ele está bem, melhor do que estaria no Teatro Oficina, palco que pariu em dores, alegrias e aplausos de quantos copulam com a arte. Impossível estar mais à vontade posto que ali foi o lugar onde viveu embaralhando a peça existencial na qual misturou representação, política, e muita invencionice. Não há, contudo, como dar por barato o ritual de passagem, a charada da despedida antes de superar os 50 tons de suas cinzas tornadas.

A criatura foi velada no próprio Teatro que criou. Velada, palavra estranha e mórbida; velada, ironia pura, quase desacato; velada, logo ele que queimou o mesmismo com ímpeto oswaldiano do “Rei da vela”, libelo absoluto da modernização da nossa cultura. Em torno de seu corpo, a lógica centrífuga da algazarra se fez cordão no qual tipos bacantes se soltaram em frenesis requebrados por carpideiras e carpideiros invertidos. E num alucinado transe festou-se o enredo carnavalesco da Vila Izabel, assinado por ele em 1975, “Quero o perfume das flores/ ação, luz e cores/ nesta festa popular/ eu sou o teatro brasileiro/ da vida o espelho verdadeiro/ sambando neste Carnaval/ com a minha arte que é imortal/ barreiras as venço com bravura/ transmitindo a toda gente/ distração e cultura/ sou a magia permanente/ que na história do Brasil/ sempre se fez presente/ tenho beleza, sou a esperança/ trago alegria/ neste dia de folia”. Ressalte-se “eu sou o teatro brasileiro… trago alegria neste dia de folia”. E folia não faltou naquele dia.

Em termos musicais, tantas outras trilhas se mostraram pautáveis e valeriam como prelúdios para aquele festim pagão, avesso perfeito de qualquer solenidade contrita, solene, gregoriana. “Ninguém chorou/ ninguém riu, e era carnaval”, pois é, parece que Sérgio Ricardo se antecipou sugerindo que “no fogo de um barracão/ só se cozinha ilusão” e, arte imitando a vida, soou como trilha do dramático fogo no apartamento. Não poderia, é claro, faltar a evocação do “fita amarela” de Noel e Almirante reafirmando o que se encenou “não quero flores/ nem coroa com espinho/ só quero choro de flauta/ com violão e cavaquinho”. Sabe, quem repontou garantindo a patuscada, sabe?! Ninguém mais ninguém menos que Rita Lee, justamente ela que se evaporou tão recentemente, se sugeriu no verso sábio “pra que sofrer com despedida?/ se quem parte não leva/ nem o sol, nem as trevas/ e quem fica não se esquece tudo o que sonhou”. E tantos outros cantos deixaram seus cantos para o espanta-choro do Zé Celso…

E de arte em arte, a literatura tão prezada também se fez prefácio corrigindo a tradição mórbida, e não haveria de ser de outro jeito, pois o Macunaíma que nos habita não permitiria vestígio de luto circunspecto. Dos livros, a primeira voz inscrita veio pela pena de Machado de Assis no “Memória póstumas de Brás Cubas”. E antevejo o próprio autor-ator-defunto dando conta do legado na voz do morto-falante “minha obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus”. Sim a Deus, às deusas, aos orixás e encantados. Evoé…

O velório de Zé Celso no Teatro Oficina foi uma manifestação de vida e alegria

Outro texto se incorporou: “Morte e a morte de Quincas Berro d’água”. Como que atualizando o velho Quincas do “Memória póstuma”, o de Jorge Amado, o “berro d’água”, berrou ressuscitando o irreverente inerte disfarçado. O amado Jorge, danado adivinho, anteviu tudo e predisse a apoteose: “Assim é o mundo, povoado de céticos e negativistas, amarrados, como bois na canga, à ordem e à lei, aos procedimentos habituais, ao papel selado”. Talvez o mais decisivo seja a nota-fim “No meio da confusão ouviu-se Quincas dizer: me enterro como entender na hora que resolver. Podem guardar seu caixão pra melhor ocasião. Não vou deixar me prender em cova rasa no chão”.

E assim, sem ir Zé Celso se foi deixando-nos o desafio de continuidades. Tomara que saibamos manter acesso o legado e que possamos agradecer pelas lições de vida e morte. Tomara…