A verdade saindo do poço, Jean-Leon Gèrome, 1896

Para Emílio Antonio Frascischetti

A conversa frugal de repente virou polêmica. Tratava-se de encontro almejado, reunião de amigos de adolescência que não se viam há cerca de 50 anos. E éramos tão unidos no colégio interno. Organizei tudo em casa para juntar um do Nordeste e outro do Sul, um historiador, outro crítico literário, ambos reputados. Começamos bem, apresentamos sínteses de nossas trajetórias, comentamos sobre filhos e netos, coisas do gênero. Sem que déssemos conta, porém, o papo desandou para política e, não demorou, os dois pareciam inimigos na fronteira da agressão. Vitaminei meu lado anfitrião e evoquei oráculos capazes de me iluminar e, numa fagulha, surgiu a oportunidade: um dos contentores defendendo seu político de estimação, quase aos gritos soltou a frase redentora: “ele é um ladrão, esta é a verdade nua e crua”. Foi o que bastou.

Peguei carona na deixa e interrompi: “vocês conhecem a lenda da verdade e da mentira”? Servindo mais uma taça de vinho fui contando a historinha que motivou o pintor Jean-Leon Gérome, em 1896, a dar forma a um de seus quadros mais instigantes que, aliás, não sem razão é chamado “A verdade saindo do poço”. Pois bem, com ar de Gandhi tropical, assumi a contação: “um dia, a mentira se encontrou com a verdade à beira de um poço. Como o calor era intenso, a mentira convidou a verdade para um banho refrescante. Iludida, a convidada concordou e ambas, nuas, entraram na água. Arrebatada, a verdade se deixou distrair e, rápida, a mentira fugiu. Desesperada, a verdade recusando-se a vestir as roupas da mentira, saiu mundo afora, nua e crua”.

Confesso que foi desconcertante ser interrompido pelo amigo nortista que da altura de seu conhecimento de arte disse: “é, mas antes Luigi Mussini, em 1847, retratou a verdade aproximada da ciência e então os filósofos (Sócrates, Platão e Aristóteles) se juntam aos físicos, astrônomos e matemáticos (Galileu, Pascal, Kepler) e um apontando para o feito do outro indicava o caminho da ciência” e, completando com ironia, “ao contrário dos negacionistas”. Pronto, a terceira guerra mundial estava declarada.

“O triunfo da verdade”, Luigi Mussini, 1847

Novamente apelei para uma variação do mesmo tema lembrando que anteriormente Peter Paul Rubens, em 1622, também se valeu da mesma figuração sugerindo a verdade vitoriosa sobre a discórdia e a falsidade.

“O triunfo da verdade”, Peter Paul Rubens, 1622

O amigo do sul não se deixou vencer e como especialista em cultura renascentista, recobrou a antítese da verdade, mostrando a mentira como prática e, para evidenciar, recuperou o fato de Michelangelo ter apelado para falsificações. E foi dizendo: “não se esqueçam que em 1496, com 21 anos, Michelangelo forjou a escultura ‘Eros Adormecido’ e com requinte, até enterrou para melhor falsear a peça”.

O nortista, não se dando por vencido, aproveitou a oportunidade e replicou: “então a fakenews já existia e seu partido apenas aperfeiçoou”. Novamente, interferi apoiado no fabuloso livro de Noah Charney “O ladrão de arte”, argumentando que houve um tempo em que a cópia era prezada como atividade exemplar, atestado de aptidão e, transformados em personagens intrigantes, alguns desses “artistas” tornaram-se famosos como é o caso de Wolfgang Beltracchi, que produziu uma quantidade enorme de falsificações famosas e até passou de vilão a herói.

Na medida em que o tema centrou na questão artística, os interesses foram se alterando, mesmo assim, temendo que tangêssemos exemplos como “Desastres da guerra” (Goya), “Guernica” (Picasso) ou “Guerra e paz” (Portinari), tratei de questionar sobre preferências pessoais e então uma enxurrada de possibilidades se abriu: “As meninas” de Velasquez; “A noite estrelada” de Van Gogh; “A criação” de Michelangelo; “A última ceia” de Da Vinci; “O grito” de Munch; “O nascimento de Vênus” de Botticelli; de “Picasso o escolhido foi “Les démoiselles d’Avignon” e de Monet “A ponte sobre uma Lagoa de lírios d’água”; de Dali “A persistência da memória”, e, é claro, não poderia faltar “A moça com brinco de pérola” de Vermeer e nem o intrigante “A traição das imagens” de Magritte e “O beijo” de Klimt. Do Brasil ganharam destaque tanto Tarsila com o “Abapuru”, “Os retirantes” de Portinari, como de Di Cavalcanti com “As cinco moças de Guaratinguetá”.

Salvator Mundi, atribuido a Leonardo Da Vinci

Antes que o volume de citações chegasse ao milhão, sugeri que escolhessem uma só, e então entrou na disputa “Salvator Mundi” atribuido a Da Vinci”. A palavra “atribuido” bastou como estupim para nova disputa – disputa não, guerra – mas esta eu deixei rolar porque seria travada em outro campo, na arena da arte que, assim, sugeria outra arte, esta capaz de exigir argumentos e legitimar a mudança de assunto, o conhecimento, a cultura em busca das vestes da verdade de cada um.