Outubro é um mês complicado e de tal maneira perturbador que alguns especialistas apontam estratégias para seu enfrentamento. Sob o sugestivo título “Gerenciando a ‘Outubrite’: um guia completo para você enfrentar a tensão”, artigo estampado no Estado de Minas, Flavio de Castro, analista de Educação, elenca dicas para a superação das tensões: consciência dos problemas, pausa reflexões sobre alternativas, diminuição das atribuições complementares. Dimensiona o décimo mês do calendário como uma dobra fatal onde o cansaço, as decepções, a ansiedade e desencantos dos planos inconclusos se soldam frente olhar medido do fim do ano. E acresce-se que 2023 foi período de eleições arrastadas, tensas, fracionadoras de posições políticas com efeitos estendidos. E como tem doído a trituração de amigos, parentes e pessoal de convívio! Não bastasse, a guerra da Ucrânia iniciada logo em fevereiro, se junta a outra, ocorrida em novembro, provocando o dramático confronto da Palestina e Israel. Isso sem contar outras que não compõem considerações jornalísticas como as do Iêmen, Sudão, Burkina Faso, Etiópia. E agora até a precária vizinha Venezuela se arvora bélica ameaçando a paz continental.

Tragédia de Burkina Faso fora do foco da grande imprensa

E pensar que tudo começou, no primeiro de janeiro, com uma festa que prometia realinhamento do país, mas que com 8 dias passados manchou o límpido e democrático sonho de quantos supunham uma caminhada conciliadora. Aliás, a essas decepções políticas outras se somaram machucando a sensibilidade coletiva. E foram mortes icônicas que nos arranharam sobremaneira: Gloria Maria, Aracy Balabanian, Juca Chaves, Rita Lee, a simpática Palmirinha; no futebol perdemos Roberto Dinamite e nas letras Cleonice Berardinelli, entre tantos outros talentos que afinal nos soldavam. Não bastasse, atravessamos o ano mais quente dos últimos 125 anos e não faltaram secas inclementes, chuvas torrenciais, fenômenos nunca vistos em escala tão expressiva.

Qualquer inventário sobre os fatos ocorridos traz enredos apavorantes. Mas é ano que se finda e de algum lugar temos que tirar forças para remoçar esperanças. Fica claro que não será fácil virar o jogo, dar sustento à mágica mudança do contexto. Exatamente por isso, creio, há uma chance que merece destaque: a consciência do reencontro pessoal, de nós com nosso interior. Sem cair no chavão que inventa um “novo tempo”, me animo pensar que o melhor do ano é constatar que com ele amadurecemos na certeza da realização de um caminho de volta a nós mesmos. Falo especificamente do direito ao recolhimento, à intimidade reflexiva. Como se fosse um balanço existencial. Tudo isso, porém, sem cair em exclusivismos egoístas ou alienações. Pelo reverso, com o aprimoramento pessoal supõem-se crescimento comunitário.

Sem esquecer do mundo, longe de alheamentos, o verbo contemplar pode ser bom aliado contra a coleção de ameaças externas. E vale ressuscitar a prática dos projetos de ano novo, mas de maneira comedida e de alcance pessoal e imediato. No meu caso, com certeza, buscarei dar menos opinião e ouvir muito mais, será animador admitir minha pequenez frente a questões que se agigantaram no contexto da globalização. E olhe que não se trata de alguma resignação ou aceitação passiva. Pelo avesso, nutro supostos em ensinamento velhos, no caso derivados das lições de Sócrates no famoso “conhece-te a ti mesmo”. E o apelo filosófico leva a divisão clara do que Epicteto chamou de “esfera interna da vontade X esfera externa da vontade”. E lembro que Sêneca, também estoico, deixou marcada em suas “Cartas ao discípulo Lucílio” a responsabilidade de enfrentar os desafios pessoais não resolvidos, cultivar conhecimento e cuidar de novas conexões com o alheio.

Epicteto, de escravo a requisitado filósofo

As lições do passado ganham roupagem nova quando se reconhece no século XX a força individual expressa na liberdade de escolhas inscrita na busca de significados existenciais no mundo caótico. Com aprofundamento em questões éticas, o auto olhar proposto por filósofos como Sartre e Camus convoca a discussão sobre o dilema vivencial repartido entre a “náusea do mundo” e o alcance individual capaz de acionar ações explicativas do limite pessoal que só se plenifica frente a consciência de nossa finitude. Mérito da postura existencialista o reconhecimento da complexidade individual que se bem nutrida pode ser agente capaz de promover a felicidade pessoal independentemente do nível de tensão ambiental.

Mérito da constatação de nossos limites na solução de dramas sociais, a possibilidade de volta a si mesmo ganha foros de antídoto para o ano novo. Que 2024 venha com a carga que vier, e que tenhamos força, coragem e preparo para reverter o peso negativo inerente aos pretéritos recentes. E que o dia 1 de janeiro deste ano seja a chave que abra nossa porta pessoal, condição única do que pode nos ressignificar no mundo.