Millôr Fernandes dizia que o Natal é mais uma daquelas datas que mudam para continuar tudo do mesmo jeito. Perplexidades à parte, lembremos que antes, em 1901, Machado de Assis sentenciava, no célebre “Soneto de Natal”, a frase em torno da qual muitos adultos gravitam: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”. O melancólico apelo machadiano remete às meditações de um velho que “ao relembrar os dias de pequeno” não mais encontra “as sensações de sua idade antiga”. A profundidade corrosiva contida neste desafio indagador sugere a passagem do tempo como alquebra da alegria e do encantamento. E o Natal, no presente sem alguma magia, seria atesado das ilusões que se fragmentam em progressões ameaçadoras de futuros melhores. E ainda reponta a frase fatal de Unamuno pontificando que o “sentido trágico da vida mede a distância entre o que fomos em criança e o que nos tornamos depois”, e conclui “quando as comemorações perdem as cores da meninice é porque envelhecemos sem volta”.

Com essa questão me atordoando, tropecei no óbvio: não basta mais resumir tudo a um “gosto X não gosto”, a um “mudou X mudei eu”, ou mesmo em aspirado “tomara que passe logo”. É preciso mais, muito mais, e não há como fugir de argumentações explicativas, afinal o Natal é a mesma data do calendário insistente, repete ano a ano o 25 de dezembro, mas em essência tudo é diferente. O Papai Noel se modernizou tanto e com sutileza perversa tomou o lugar do aludido Santo-menino-redentor. E nessa lida, o casebre edificou-se em Shoppings, e as oferendas dos Magos viraram mercadoria calculadas em cifrões inflacionados.

Machado de Assis “Mudaria o Natal ou mudei eu?”

E que dizer das atualizações na imagem do que um dia foi o modesto “bom velhinho”. Remoçado, assumiu a fantasia da “terceira idade”, e pintado de afortunado, bem nutrido, foi incorporando o novo espírito do mundo capitalista. E quanta sutileza: há propaganda dele fumando Pall Mall, baforando charuto, tomando Coca-Cola. As feministas inventaram a Mamãe Noel; o movimento negro o fez mulato; os gays coloriram suas roupas. Tudo, é claro, em nome da paz, da concórdia e da união, estas, aliás, funcionando como mensagens pré-fabricadas e que viraram votos propalados à todes, não mais restrito aos “homens de boa vontade”.

O esvaziamento da celebração religiosa que marca(va) o nascimento de Cristo aponta também para o final do ano, condição que agrava os conteúdos comemorativos sintetizados em agendas consumistas. Espanta muito, por exemplo, constatar que o sisudo e poderoso grupo que dirige a Comunidade Europeia recentemente gastou sessões multiplicadas para discutir a troca do consagrado “Feliz Natal” por um politicamente correto “Boas festas”, isto em nome da diversidade inclusiva. Essas eventuais oficializações de nomenclatura, no entanto, se formulam inúteis e estão atrasadas, pois as alterações não decorrerão dos nomes, já se instalaram na atmosfera da modernidade.

É claro que tudo tem halos de finura que permite vestígios de memórias passadistas. Mas o empenho religioso que vigora apesar do declínio não se justifica em posturas individuais, verdadeiras exceções, posto que a indicação mítica nórdica do velhinho com suas renas já está estabelecida e enfeita vitrines e posts de redes sociais. Sabe, dói um pouco pensar que o cumprimento efusivo tem hora marcada e o que deveria funcionar como sentimento legítimo e autêntico se assume como se um despertador mecânico, preparado para alertar o momento exato da “noite feliz”. Como obrigação compulsória, de maneira pouco leal, vestimos roupas novas, nos abraçamos como se amanhã fosse um dia de triunfo. E com brindes saudamos o nascimento de um Cristo proscrito, como se lá fora não houvesse verdadeiros Cristos passando fome, sem abrigo, buscando emprego e carentes de abraços sociais.

Dia de mudança?

E quem garante que o 31 de dezembro é dia de mudança? Quem tem esperança que ano eleitoral, com as campanhas que já se desenham, será promessa de virada? Pensando o Natal como marco deste 2021, pode-se supor o futuro como ameaça clara. Pessimista eu? Não. Nem realista sou. Tudo que proponho é que assumamos o “Pós-Natal”, e, a partir da consciência de um tempo que já não é novo, mudemos. Mudemos em conjunto. E então, que venha 2022. Vamos conversar mais no ano que vem…