O general não sabia com quem estava falando e achou que Nara Leão era mais uma Amélia dessas da música popular, que se calava quando via um macho contrariado. Foi aí que o milico de 1964 ameaçou a cantora de prisão se continuasse com aquela história de protesto, de carcará e de não mudar de opinião. Nara era a pobre menina rica do musical. Morava de frente para o mar de Copacabana, o que não a impedia de denunciar a miséria do povo e a opressão dos poderosos.

O corte de cabelo Chanel fazia uma vírgula graciosa numa das maçãs do rosto de Nara, mas na hora de responder ao general ela tirou da frente qualquer vírgula que empanasse a contundência da frase. No bom português dos anos 1960, mostrou que não era leão à toa, e mandou brasa no gorila: “O Exército não serve pra nada!”.

Nara na praia de Copacabana, em frente do apartamento onde morava

Ela faria 80 anos neste 19 de janeiro e o Globoplay está exibindo desde o fim de semana “O canto livre de Nara”, documentário de Renato Terra sobre uma vida que se mistura com a história do Brasil, da cultura popular e da resistência feminina no enfrentamento do troglodismo macho. Ela fez o que quis. Carlos Drummond de Andrade entendeu essa liberdade e deu um toque no general: “Nara é pássaro, sabia?/ E nem adianta prisão/ Para a voz que pelos ares/ Espalha sua canção”.

Nara morreu de câncer aos 47 anos, em 1989, e está sentada à mão direita de Leila Diniz e Nise da Silveira, ao lado esquerdo de Zuzu Angel e a escrava Anastácia. Avançou, sem discurso e com muito charme, as lutas da mulher. Enfrentou o general, a gravadora e a caretice de quem lhe parecesse assim. Em 1959, quando o padreco proibiu Norma Bengel, a vedete de voz pequena e coxas monumentais, de cantar num show de bossa nova na PUC, Nara rezou pela primeira vez a oração do “mexeu-com-uma-mexeu-com todas” – e em protesto levou o show para a UFRJ.

Nara há muitas. A todas elas as mulheres de 2022 deviam acender velas pela receita, com açúcar e com afeto, de uma vida em que cada uma possa fazer em liberdade o seu doce predileto. Ora foi um carcará mordendo o cangote dos déspotas, ora um dragão mágico lançando fogo pelo nariz, quando em seguida a um disco de protesto fazia outro de canções para embalar crianças. Sem tabu, aproximou as contradições nacionais. Edu Lobo quase rompeu relações quando a amiga – que tinha apresentado o jazz à turma, menina culta de francês perfeito, musa da bossa nova Zona Sul – gravou as baladas de motel do suburbano Roberto Carlos.

“O canto livre de Nara” é um documentário primoroso sobre um país que estava aqui ainda pouco, a cultura no centro das transformações, um Rio de Janeiro de cair o queixo – e eis que essas imagens emocionantes de uma civilização sofisticada e divertida surgem quando tudo em volta é só morte e destruição. É o jeito de Nara, sempre na contramão. E lá vem ela, o sussurro charmoso, botando a banda para passar a delicadeza da gente sofrida em meio à gritaria dos idiotas.