Com certeza, minha geração – o pessoal de 6, 7 décadas ou mais – vive experiências inenarráveis em termos de transformações de relacionamentos pessoais. Para o bem ou para o mal, muitas coisas mudaram. Muitas. As transformações tidas como progresso se fazem sentir em todos os quadrantes da experiência humana e isso justifica o registro de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos evidenciando um ponto de não retorno “eu já estou com o pé na estrada/ Qualquer dia a gente se vê/ Sei que nada será como antes, amanhã”. A insistência dessa canção em minha memória fez pensar nas mudanças operadas na surdina dos dias que se modernizaram de maneira sutil e inequívoca. Seria fácil exemplificar com evoluções mecânicas tipo automóveis, aparelhos de rádios, telefones, milagres conquistados pela medicina, engenharia, química e outras áreas das ciências. Difícil mesmo é aquilatar as alterações comportamentais operadas em nossos procedimentos familiares, no âmbito das relações próximas, cotidianas.

Saramago: o sábio do meu avô não lia e não escrevia

Confesso: sou louco por histórias de avós. No plano da chamada “alta literatura”, por exemplo, referências ilustres me fazem rever passagens enternecedoras como o discurso de José Saramago ao receber o Nobel em 1988 quando revelava que “o homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”. E progredia lembrando que entre as pessoas que o definiram estavam seus avós analfabetos, lavradores pobres. Mas devo ir mais longe no encalço da consideração sobre o afeto aos pais de nossos pais. E não tem jeito de esquecer o impacto sentido quando, ainda menino no colégio interno, li de José Lins do Rego “Histórias da velha Totônia”, texto sobre a avozinha que contava histórias continuadas para os netos. Filho de libaneses, jamais deixo o breve texto de Milton Hatoum “Elegia para todas as avós” onde declara em nome dos netos que “todos os avós são seres inesquecíveis”, e mais adiante decreta “claro, avós geralmente não impõem limites, seus netos já nascem anjos”.

Ninguém esquece também das avós dos contos da carochinha, principalmente do “Chapeuzinho vermelho” que desde 1697 encanta o mundo. No âmbito brasileiro os casos se multiplicam em nomes como Ana Maria Machado, Rute Rocha, Cora Coralina e, principalmente, Monteiro Lobato com a sabichona Dona Benta. Em todas as situações, sempre se repete o suposto afeto que marca o imaginário geral. E como esse encantamento fascina, acalma, nos faz melhores! Sabe, para mim, avós fecham o círculo mínimo do pertencimento.

Dona Benta sabia tudo

Pois é, crescemos enfeitiçados por uma ideia preestabelecida de avós, em particular pelas vovozinhas que sempre tinham receitas de pães, doces, geleias. É bem possível que nós mesmos tenhamos referências sobre tais tipos, mas e nós como avós? O simples enunciado desta pergunta me faz estremecer. Tanto no feminino como no masculino, é improvável que ainda hoje sejamos capazes de preencher os quesitos dos vovozinhos e vovozinhas do passado – mesmo de uma geração atrás.

Tudo mudou no universo das percepções parentais. Filhos moram longe, trabalham demais, têm alternativas de lazer que não incluem os velhos, e assim por diante. No mesmo ritmo de mudança de hábitos, os netos têm outros interesses onde nem sempre cabemos como participantes. É verdade que isso tem um avesso, pois muitas mulheres – e mesmo homens – não querem ser comparados aos vovozinhos fofos de outrora.

Será que não fazem mais avós como antigamente?

E então repontam os casos de antigamente, aquelas histórias em que os netinhos vinham para a casa dos vovôs e vovós com fôlego capaz de transfundir energia aos velhos. Isso tudo acabou, pois é garantido que não se fazem mais velhos como antigamente. Confidenciando essas coisas com meus botões, fico pensando no que perdemos. E até me conformo achando que talvez tenha desenvolvido mais e melhor meu papel de avô agora quando os netos não são mais pirralhos inquietos e ouvintes de historinhas do “arco da velha”. Sim, ser avô de jovens é mais alcançável do que de crianças. De toda forma, mais do que nunca é válido não perder o contato e, na atualização conceitual, não jogar fora o amor inerente a quantos reconhecem o tempo como senhor da verdade.