Estudantes de Hong Kong mostraram que o poder não pode tratar os cidadãos como um pedacinho de palha, sem força

‘O que eu fiz foi imperdoável… ter mergulhado a cidade neste imenso caos é imperdoável”. Estas palavras foram ditas na segunda-feira passada por Carrie Lam, chefe do governo de Hong Kong. Ela queixou-se de estar duplamente espremida: pela guerra comercial entre os EUA e a China e pelos “dois senhores” a quem deve servir: o governo de Pequim e o povo de Hong Kong. Lam tem razão — a cidade está perturbada: num turbilhão, manifestações se sucedem desde começos de junho. O estopim da crise foi o envio ao Parlamento local, em fins de maio, de uma lei autorizando a extradição para a China continental de criminosos comuns solicitados por Pequim. Os termos do projeto, porém, eram vagos, permitiam a deportação de quaisquer críticos do regime comunista.

HONG KONG, HONG KONG - JUNE 15:  Carrie Lam, Hong Kong's chief executive, speaks during a news conference at Central Government Complex on June 15, 2019 in Hong Kong China. Hong Kong's Chief Executive Carrie Lam announced to delay a controversial China extradition bill and halt its progress on Saturday after recent clashes between the police and protesters outside government buildings over the bill that would allow suspected criminals to be sent to the mainland. An estimated 1 million people took to the streets on Sunday to protest against the bill as clashes between demonstrators and the police erupted after the peaceful march and many believe the proposed amendment would erode Hong Kong's legal protections, placing its citizens at risk of extradition to China. (Photo by Anthony Kwan/Getty Images)

              Carrie Lam, chefe do governo de Hong Kong

Em 6 de junho, dois mil advogados protestaram em público, vestidos de preto, em silêncio. Era preciso manter os termos do Tratado de 1997: um país, dois sistemas. Três dias depois, uma grande passeata encheu ruas e avenidas, e aquela proposta deveria ser retirada. Começou uma queda de braço. A repressão atacou com brutalidade: gás, porretes, jatos de água e prisões. Aqueles “desordeiros” pagariam caro. Os manifestantes não se intimidaram — dispersavam-se e voltavam a se reunir em outros lugares. Para se proteger das balas de borracha, passaram a aparecer com o corpo coberto, máscaras contra gases, óculos escuros, capacetes de motociclistas. Corriam em zigue-zagues, invadindo estações do metrô, paralisando os trens, evitando confrontos. Quando podiam, pegavam os policiais de jeito, as pedras voavam, acompanhadas pelos coquetéis molotov, temíveis, quando bem lançados. O mês de junho foi um sufoco. Era apenas o começo. O governo fez uma primeira concessão: suspenderia o envio do projeto. Nada feito. Ele teria que ser retirado. Nessa altura, a mídia internacional apropriara-se do processo, e o mundo tomava conhecimento daquelas inconveniências. Trump sugeriu que os governantes chineses fossem conversar com os manifestantes. Como se ele próprio tivesse este hábito. Pequim não deu ouvidos: o projeto seria mantido.

Em 1º de julho, as gentes, ousadas, tomaram de assalto o Parlamento local. Em meados de agosto, milhares de jovens irromperam no aeroporto internacional, forçando a suspensão dos voos. Já se contam 1.183 prisões, mais de cem indiciamentos, além de incontáveis feridos e nove suicídios. Todavia, as passeatas não esmorecem. No último fim de semana, o pau voltou a quebrar feio. Os policiais, como gatos grandes, as garras terríveis, fazem o possível para pegar os jovens, como ratos rápidos, apoiados pela população. Apareceram filmes mostrando manobras militares, recordando que o Exército chinês se encontra a minutos da cidade rebelada. A Agência oficial anunciou, sibilina, que “o fim está próximo”. Surgiu o fantasma da Praça da Paz Celestial e do massacre de junho de 1989. O governo de Pequim voltaria a golpear? Vozes moderadas recusaram a possibilidade, mas, considerando-se a folha corrida do governo chinês, a hipótese não pode ser excluída.

Joshua Wong

Joshua Wong, um dos líderes dos protestos

A boa notícia é que as autoridades decidiram retirar o projeto que originou os conflitos. No entanto, Joshua Wong, um dos líderes dos protestos, respondeu que a concessão “não era o bastante e vinha muito tarde”. Outra líder, conhecida como Miss Cham, foi mais incisiva: “é um esparadrapo numa gangrena”. Eles exigem mais quatro pontos: a formação de uma comissão independente para investigar a violência policial; anistia geral para os envolvidos nas ações; que o governo não mais os chame de “desordeiros” e o sufrágio universal para a eleição do governo da cidade.

É improvável que Pequim aceite o programa. Abriu-se, entretanto, um campo de diálogo a ser aproveitado. Os estudantes tiveram uma grande vitória. Como diz um provérbio chinês, mostraram que o poder não pode tratar os cidadãos como um pedacinho de palha, sem força. E evidenciaram algo recordado há dias por Franklin Martins e muito inspirador: quando as pessoas não temem, as tiranias ficam pequenas.