Se ainda estivéssemos no século 19, certas trocas de insultos só seriam lavadas com sangue. Mas as regras civilizatórias evoluíram muito desde então. Hoje, quando se torna impossível a dois seres humanos estreitar a inimizade, admite-se como razoável, no máximo, que jurem se manter distantes até que a morte os junte. Rodrigo Janot quis adiantar o relógio. Cogitou abreviar seu reencontro com Gilmar Mendes, assassinando-o. Na sequência, cometeria suicídio.

Rodrigo Janot ainda ocupava a chefia do Ministério Público Federal quando premeditou o crime. Segundo conta, colocou “uma pistola carregada na cintura”. Dirigiu-se ao Supremo. Mataria Gilmar na antessala do plenário, antes do início da sessão. Achegou-se ao alvo. “Só não houve o gesto extremo porque, no instante decisivo, a mão invisível do bom senso tocou meu ombro e disse: não.” O dedo do quase-assassino travou no gatilho.

Janot e Gilmar continuam vivos. Mas a revelação do assassinato e do suicídio que não aconteceram fez pelo menos duas vítimas. Morreu a reputação de Rodrigo Janot, ou o que restava dela. Saiu um pouco mais ferida a Lava Jato, que já se arrasta pelo noticiário com aparência de uma operação terminal.

Janot e Gilmar

Sorrisos à parte, como a Lava Jato enfrentará mais esse golpe?

A encrenca de Janot com Gilmar atingiu um estágio irreversível quando envolveu a mulher de um e a filha do outro. Janot invocara a suspeição de Gilmar num caso sobre Eike Batista. Alegara que a mulher do ministro trabalha numa banca advocatícia que tinha o milionário como cliente.

Na sequência, Janot enxergou as digitais de Gilmar no noticiário sobre a atuação de sua filha como advogada da OAS. Algo que tornaria suspeitas as ações do pai em processos contra a empreiteira, pilhada na Lava Jato. Foi então que Janot viveu o momento “de dor aguda, de ira cega” que o levou a tramar contra a vida de Gilmar.

Como advogado, Janot não ignora algo que todos sabem: justiça individual, fora do direito, não é justiça. Como servidor graduado do sistema estatal de Justiça, o então procurador-geral da República deveria exibir, além de preparo técnico, uma qualidade básica: equilíbrio, sinônimo de bom senso, sensatez, comedimento.

A capacidade técnica de Janot subira no telhado quando ele celebrou, em 2017, a delação premiadíssima da turma da JBS. Na ocasião, subverteu-se até o brocardo. Restou a impressão de que não é que o crime não compensa. A questão é que, quando compensa, ele muda de nome. Passa a se chamar colaboração judicial.

Descobre-se agora que, além da boa técnica jurídica, Janot mandara para o beleléu também o bom senso. Poderia tomar várias providências contra Gilmar, exceto o tiro na cabeça. A dúvida que remanesce é a seguinte: até onde a insensatez de Janot afetou sua atividade funcional? É essa interrogação que fere a Lava Jato.

No caso JBS, a esperteza do delator Joesley Batista foi tão grande que acabou engolindo o dono. O empresário conseguiu a proeza de se autogrampear num diálogo-pastelão com seu executivo Ricardo Saud, outro delator. A conversa revelou uma trama que deixou Janot na lona.

Repassada à Procuradoria por descuido, a gravação levou Janot a fazer por pressão o que não fizera por precaução. Premiados com uma imunidade penal inédita, os delatores do Grupo JBS ganharam, finalmente, uma temporada na cadeia.

PF faz busca

PF realizando buscas em endereços de Janot, na tarde de sexta 27

A gravação havia sido feita em 17 de março de 2017. Deveria conter um diálogo comprometedor de Ricardo Saud, ex-executivo da J&F, controladora da JBS, com o senador piauiense Ciro Nogueira, presidente do PP. Ao escutar o áudio, uma procuradora da Lava Jato se deparou com um diálogo vadio. Nele, Joesley e Saud atiraram contra os seus próprios interesses e acertaram em Janot.

O conteúdo da gravação, por inusitado, levou Janot a concluir na época que Joesley e Saud não sabiam que se auto-grampeavam. Um nome saltou do diálogo como pulga no dorso de um vira-lata: Marcelo Miller. No dia em que a gravação foi feita, Miller era procurador da República. Integrava o time de Janot na Lava Jato.

A certa altura, Saud diz a Joesley que estava “ajeitando” as coisas com Miller. A conversa deixava claro que a dupla contava com os bons préstimos de Miller para obter vantagens de Janot na celebração de um acordo judicial. Em troca, Miller seria admitido como sócio num escritório de advocacia.

Dez dias depois da gravação, o Grupo JBS foi reconhecido como colaborador da Lava Jato. Os delatores obtiveram a premiação máxima prevista em lei: a imunidade penal. Em 5 de abril de 2017, Miller pediu exoneração do cargo de procurador da República. Dias depois, apresentou-se ao Ministério Público como sócio da banca de advogados Trench, Rossi e Watanabe, que havia sido contratada para negociar um acordo de leniência em nome da J&F, a holding da JBS.

O episódio desceu à crônica da cruzada anticorrupção como uma das grandes lambanças da Lava Jato. Agora, ao revelar-se destemperado o bastante para cogitar o assassinato de um ministro do Supremo na sede do tribunal, Janot transforma o livro biográfico que está na bica de ser lançada numa lápide de sua reputação.