Entrevista com o professor Daniel Aarão Reis, historiador e professor titular de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense e autor de “LUÍS CARLOS PRESTES – Um revolucionário entre dois mundos”

 

Jornal CONTATO– O que há de comum entre 1954, 1964 e o Brasil de 2016?

Daniel Aarão Reis Filho – É sempre possível efetuar comparações entre diferentes conjunturas. Quando bem feitas, podem ser úteis.  No entanto, penso que está havendo um exagero, uma distorção, nas comparações que procuram encontrar identidades entre as crises de 1954 e 1964 e a atual. O procedimento me faz lembrar debates de história militar, onde é frequente certos estrategistas entrarem em “guerras futuras” com critérios da “guerra passada”…os resultados são sempre desastrosos. A atual crise é produto de uma nova conjuntura, original, derivada do sistema político construído pela Constituição de 1988 e pelas dificuldades, também originais, suscitadas pela reiteração da cultura política nacional-estatista pelos governos petistas.Ver na atual crise uma repetição do que houve em 1954 e 1964 é demonstrar uma notável miopia política e, no mesmo movimento, incapacitar-se para agir e lidar com os desafios do atual momento.

 

JC – Existem semelhanças entre Honduras em 2009, o Paraguai em 2012 e o Brasil em 2016:?

Daniel –Não. O que está havendo no Brasil, em termos políticos, é o acionar de um dispositivo constitucional – o impeachment – essencialmente antidemocrático e antipopular. O triste é que as esquerdas – e o PT em particular – nunca se preocuparam em criticar e tentar revogar este dispositivo autoritário. Ao contrário, usaram e abusaram do mesmo. Agora, sentem o veneno que usaram se voltar contra si mesmo.

 

DM – Estudiosos afirmam que a Venezuela seria o próximo país latino-americano a sofrer um golpe constitucional.Essa análise procede?

Daniel – Escrevi há meses um texto, mostrando que a cultura política nacional-estatista na América Latina estava vivendo um período de crise aguda, literalmente jogada nas cordas, pois seus pressupostos e sua doutrina de conciliação de classes tinham entrado em crise. No contexto de crise econômica, os governos nacional-estatistas veem-se, como em conjunturas anteriores, emparedados pelas contradições sociais. Precisam optar – e definir – quem pagará a conta da crise.Entretanto, as lideranças nacional-estatistas, nestas situações, contorcem-se desesperadamente, pois suas propostas conciliatórias já não se sustentam mais. É muito impressionante como Dilma e seus partidários agarram-se aos argumentos jurídicos e tentam “resumir” a crise atual a interpretações jurídicas, esquecendo-se do óbvio – a crise é política, fruto de contradições políticas que se acirraram no contexto de uma profunda crise econômica. Evidenciar o caráter político da atual crise é mais do que muito importante, é essencial,  para superarmos a indigência do debate jurídico e da polarização entre golpe X não golpe, de um pobreza franciscana.

 

Daniel Reis e capa de dois de seus livros

Daniel Aarão Reis e capa de dois de seus livros

 

JC – Qual o seu balanço do período Lula?

Daniel – A “era Lula”, que engloba os governos Dilma, sua criatura, ainda não terminou, embora o prestígio do criador esteja bastante abalado. Não compartilho, porém, a ideia de que “Lula está acabado”. Penso que amplas camadas populares continuarão associando Lula a um tempo de “ouro”, de prosperidade, distribuição de renda e prosperidade econômica. Quanto mais passar o tempo, e mais profunda a crise, mais esta associação tenderá a prevalecer. Na mesma linha, considero que a perda de posições de poder, e do governo em particular, poderá ser positiva para o PT e para o próprio Lula, caso consigam se “reinventar” e encontrar plataformas reformistas, que, embora sendo suas, foram abandonadas ao longo dos anos 1990.

 

JC – E o governo Dilma Rousseff ?

Daniel – Dilma teve muitas dificuldades de perceber a profundidade da crise econômica, extraindo dela propostas reformistas claras e favoráveis às camadas populares.  E cometeu um erro político maior na campanha de 2014: não apenas escondeu o tamanho da crise, enganando as gentes, como, depois, cometeu um estelionato eleitoral condenável, ao nomear como ministro da Fazenda um preposto do capital financeiro, o exato oposto do que havia defendido no curso da campanha, em especial no segundo turno. A manobra foi um desastre: perdeu suas bases populares, que ficaram perplexas e desorientadas, e não seduziu as elites sociais. Ficou isolada. No isolamento, potencializado por sua completa falta de vocação para a articulação política e para a formulação de um discurso congruente, acabou vendo liquefazer-se sua maioria parlamentar, permitindo que fosse acionado contra ela o dispositivo autoritário – mas constitucional e legal – do impeachment.

 

JC– MP, PF e Justiça podem ser chamados de instrumentos da Casa Grande?

Daniel – Não penso que a metáfora da “Casa Grande” aplica-se ao Brasil atual. O capitalismo neste país já alcançou níveis de complexidade que não mais podem ser expressos por esta metáfora, própria para períodos onde predominava aqui uma sociedade escravista e agrária. A metáfora pode ser útil para aquecer plateias em comícios políticos, mas é imprópria para dar conta da complexidade da sociedade capitalista brasileira atual. Da mesma forma, os aparelhos de Estado – como a Polícia Federal e o Ministério Público – não podem ser vistos como “instrumentos”, manipuláveis a seu bel prazer, pelas elites sociais. São instituições submetidas ao jogo contraditório das forças sociais e políticas. Basta ver como grandes burgueses e lideranças políticas estão hoje às voltas com processos, derrubados de seus postos (Cunha)ou mesmo presos (grandes empreiteiros). A ideia de reduzir instituições a “instrumentos” é uma tosca reiteração de um certo leninismo que já era   questionado nos anos 1930-1940 (Gramsci). Reproduzi-lo agora para compreender a sociedade brasileira é de uma pobreza que só pode resultar em propostas equivocadas.

 

JC – Proced eque o Brasil precisa, com urgência, da regulação da mídia?

Daniel – Concordo integralmente. Convém, no entanto, assinalar que tentativas feitas neste sentido por Franklin Martins foram abandonadas por orientação de Lula e não retomadas por Dilma. Uma evidência, mais uma, do caráter conciliador do nacional-estatismo.

 

Livro Luís Carlos Prestes - Um Revolucionário Entre Dois Mundo de Daniel Aarão Reis

Livro Luís Carlos Prestes – Um Revolucionário Entre Dois Mundo de Daniel Aarão Reis

 

JC – Em 2016 haverá resistência ou uma estranha derrota como em 1964 no Brasil ou na França em 1940?

Daniel– March Bloch falou da “estranha derrota” da França em 1940. Retomei a caracterização para analisar a derrota de 1964. A conjuntura que vivemos hoje é inteiramente diferente. É preciso esclarecer as contradições em jogo. Mostrar que a sociedade brasileira está diante do desafio, apontado pelas manifestações de 2013, de democratizar a democracia. Penso que se torna cada vez mais difícil reproduzir tranquilamente, na paz social, os legados da ditadura, inscritos na Constituição de 1988.Nesta perspectiva, o mais urgente é definir plataformas de reforma para que as camadas populares possam ter um norte político claro. Insistir no debate sobre os aspectos jurídicos do impeachment é jogar areia nos olhos das gentes.

 

JC – O PT precisa se reinventar? Como?

Daniel – Esta é uma frase repetida por várias lideranças petistas. O próprio Lula, sempre sensível à realidade cambiante, já a empregou. Trata-se de recuperar a vocação reformista do PT, abandonada por Lula, Dirceu e Dilma, que preferiram ir para debaixo dos lençóis com o grande capital financeiro, com o agronegócio e com as grandes empreiteiras. Estou convencido de que “voltar à planície” será uma condição mais favorável para esta reinvenção do que ficar mantendo relações carnais com as elites sociais. Os franceses usam uma expressão muito própria para o PT atual: la cure d’opposition – a cura de oposição. O PT, realmente, está precisando de uma “cura de oposição”. A ver se suas lideranças conseguem aproveitá-la…

 

JC – Como caracteriza Michel Temer?

Daniel – Um político conservador, centrista, essencialmente oportunista. Getúlio Vargas dizia que tinha dois tipos de ministros: “os incapazes e os capazes de tudo”. Eu diria que o Temer está na segunda categoria – ele é capaz de tudo.

 

JC – Como analisa o programa Uma Ponte para o futuro, elaborado por Michel Temer?

Daniel – É um programa liberal-conservador de centro-direita.Seus autores precisam explicar como, tendo estas convicções, permaneceram tanto tempo debaixo dos lençóis com os petistas. Aliás, os petistas também precisam explicar como interpretam estas relações carnais.

 

JC – Qual a cara do ministério de Michel Temer?

Daniel– Está na cara deles: um ministério das “elites brancas”.