Muitas vezes, depois que escrevo uma crônica, costumo enviá-la para alguns colegas e ex alunos, pessoas que conhecem meus dilemas frente a questão do uso da arte na sociedade contemporânea. A generosidade de amigos críticos invariavelmente me ajuda a melhorar o texto, corrigir equívocos, propor novos ângulos.

Foi exatamente isto que aconteceu com o texto intitulado “A cara da América Latina sem rosto”. A proposta era mostrar certa tendência presente nas séries feitas por fotógrafos proeminentes, artistas que preferem valorizar paisagens acidentadas, desertos, florestas, nuvens com desenhos dramáticos, mares agitados ou bichos e plantas, tudo em detrimento dos registros dos rostos da população. Sim à América Latina ainda habita o imaginário universal como um polo estranho e exótico.

Por lógico, nesses exames rápidos, tramito entre as funções da fotografia feita para público, com duas possibilidades mais importantes: denúncia ou alienação. No primeiro caso, temo que os efeitos visuais – sempre muito bonitos – se prestem a estetização inútil, reduzindo a arte e o motivo da fotografia à mera técnica ou discussão sobre luz, efeito e forma ou composição. No segundo caso, sofro com o excesso de didatismo filtrado por lentes ideológicas demais sempre atentas à denúncia.

Sem dúvida, como tantos, busco o equilíbrio oportuno que esquadrinha combinações pertinentes. No caso da invisibilidade dos rostos da população latino-americana tem sido o “apagamento” me deixa perplexo e é pela falta que me frustro. Foi, contudo, diante de problemas que avento, sobre a relevância das mostras fotográficas, que uma colega alertou sobre o significado de certas imagens que tem pautado o fotojornalismo em nível internacional. De maneira contundente, disse a interlocutora: “ora, professor, veja as fotos das crianças que morrem na travessia do norte da África para a Europa”, e, numa sequência trágica foram anexadas algumas cenas das crianças mortas, tomadas como emblema do drama avassalador que cobre de luto a moral globalizada.

Não bastasse a punhalada crítica, junto a alguns retratos veio o bilhete publicado, mensagem do socorrista alemão, professor de música, de nome Martin, que disse ter visto, dias passados, um bebê boiando na água e o corpo estava “como um boneco, com os braços esticados”. Em continuidade afirmava o voluntário: “Peguei o bebê pelo antebraço e puxei seu corpinho para os meus braços na mesma hora para protegê-lo… os braços dele, com aqueles dedinhos, balançaram no ar, o sol bateu nos seus olhos, brilhantes, acolhedores, mas sem vida”. E em lágrimas ele concluía: “Só seis horas antes essa criança estava viva”.

A associação foi imediata com outra foto, a do menino sírio Aylan, de 4 anos, trazido sem vida pelas ondas, numa praia turca, no ano passado. Há outras como do menino de 5 anos, salvo, mas ferido em explosão no dia 18 de agosto último, em Aleppo na Síria. A foto rodou o mundo e doeu em muita gente.

Frente a tudo isso me permito perguntas que envolvem o fazer fotojornalismo: pode a fotografia dimensionar a notícia, fazendo-a cumprir o papel de divulgação? Qual a moral ou o limite expresso pelo apelo à dor? Vale mostrar os corpos infantis em detrimento de outros, de velhos, mulheres grávidas, pessoas com limitações físicas? Antes de provisórias conclusões, lembremos que por traz de cada caso existe um sistema que permite isso, que sabe de traficantes, de violência de toda ordem, de estupros e até de venda de órgãos para pagar o trânsito. E vejam que estamos falando de um total, só neste ano de 3.171 mortes. Nesse contexto, qual o significado das fotografias dos meninos afogados? E desdobrando a questão volto ao ponto de partida: qual o sentido da construção da invisibilidade dos rostos latino-americanos? Tomara que analistas de fotografia consigam responder.

 

Por José Carlos Sebe Bom Meihy