Comecemos pela expressão cunhada por Umberto Eco “idiota da aldeia”. É forte, bem sei, mas traduz com nitidez o perfil de quantos se presentificam pela internet, e no galope iconoclasta apedrejam tudo que não lhes é espelho. E na saudação explícita à ignorância se valem de ataques pessoais, morais, familiares, corporativos – qualquer coisa para consagrar o estabelecido e manter inalterada a velha ordem. Nada de renovação; nada de mudança; nada de inteligente. Só se permite repetir ad nauseam. Assumindo pressupostos risíveis, tais idiotas garantem que a Terra é plana, que Lacan e Foucault são falsários, que vacinas são nocivas, que Darwin estava errado ao propor a evolução, e até que não vivemos o aquecimento global. Tendo o dinheiro público como álibi e a anticorrupção como ponta de lança, sem bem saber em que guerra combatem, os tais alucinados acusam, abatem, calam tudo que é diferente, se posicionando com defensores da moral e dos bons costumes. Inventam causas, planejam pretextos, usam Deus como mandatário e espumam ódio, raiva, intolerância, preconceito.

Humberto Eco

Humberto Eco cunhou a expressão “idiota da aldeia”

É claro que a pátria, a família, a proteção dos menores são evocadas como pólos vulneráveis e passíveis da tutela deles, guardiões heróicos. Como donos de um poder inquestionável, sempre exercido como missão redentora e de inspiração divinal, tais santos não suportam diálogos, atacam com virulência expressões de tudo que lhes é diferente, detratando o saber e a estética como se fosse algo condenável por imoral, cara e satânica. E de nada valem os juízos instruídos, nem a noção de cultura continuada, ou a aceitação da obra de arte como elixir da vida ou o avanço científico. Como apetrechos dispendiosos, expressões do livre pensar lhes é sempre um entrave caro e imoral. A pesquisa científica, por exemplo, é dinheiro jogado fora, aliás, lhes é odorante e bem pode ser desenvolvida alhures, sem assinatura nacional. O importante para essa gente é quebrar, desprezar, desmoralizar e se possível demonizar a inteligência como se ela não se explicasse na inerência humana ao direito, à beleza e ao aperfeiçoamento inteligente. Nesse impulso aniquilador da crítica ao estabelecido, nada deve ser poupado, principalmente os agentes artísticos, científicos, o jornalismo. Tudo em nome de dogmas nutridos em mentes bem pouco dadas à democracia.

Idiota da aldeia

Umberto Eco no impulso definidor do “idiota da aldeia” foi além, diagnosticou a oportunidade do problema delegando à internet a responsabilidade pela disseminação de opiniões transmitidas por essa “legião de imbecis”. Como que inconformado com a velocidade do aumento das barbaridades, o intelectual italiano apontou o impacto atual dessa gente que sempre existiu, mas que agora ganha poder outra vez. Antes, mais atomizados, agiam “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. Desdobrando argumentos, garante Eco que “normalmente, eles (os imbecis) eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”. É fácil, atualmente, identificar isso, basta ligar as redes sociais e lá estão eles de plantão, acusando os gastos públicos com escolas, com arte e informação instruída. Idem lastimável com os avanços científicos. Sem nenhuma sofisticação ou sensibilidade, rasos, sem preparo algum para debater argumentos, quase sempre se valendo do “ilumina e cola”, os ventríloquos da eletrônica, se prestam como soldados de um exército destruidor da dinâmica do mundo, contra o saber e a beleza (musical, cinematográfica, de exposições de arte, de livros, de escolas públicas, museus, instituições e programas de incentivo à cultura). Nada de pensamento crítico, esta é lei única dos arautos da burrice patrioteira.

Mas, que fique claro, há uma metodologia neste desmonte. Sejamos avisados que o veneno que circula pelo corpo social empoderado obedece a procedimentos progressivos, carregando propostas cada vez mais virulentas que visam detratar o fundamento de toda e qualquer cultura elaborada, principalmente se for transgressora. É aí que obram os novos ideólogos, gente desprovida de formação e que precisam gritar, usar palavrões, falar sem interlocução, esconder-se em cursos online pagos por seguidores pouco versados em diálogos. Numa moldura ampliada, convém lembrar que essa postura se alimenta das fake news e do combate incessante à liberdade de expressão. É quando a censura entra em cena para “sanear” os males provocados por Satãs decantados em músicas, obras de arte, livros escolares, romances e até gibis.

A correnteza dessa destruição tem matrizes históricas e, dentre tantas, o modelo mais acabado nos foi dado por Hitler que em maio de 1933 promoveu em Berlin a grande queima de livros, em praça pública – entre os autores com obras incineradas estavam Einstein, Thomas Mann, Brecht, Freud, e, claro, Marx. Aquela atitude patrocinada pelo poder não parou aí. Além de se desdobrar em leis redentoras da suposta pureza germânica, em 1937 os nazistas promoveram a primeira grande exposição onde seriam exibidas, de maneira pedagógica, obras de pintores e escultores tidos como subversivos como Van Gogh, Matisse, Picasso. Sob o título “Arte Degenerada”, para demonstrar de maneira ridícula as correntes modernistas, depois de confiscar mais de 5 000 obras famosas das quais 600 foram selecionadas, fez-se mostra para mostrar a cultura exótica como deformadora do caráter.

Capitaes da areia

Hitler queimou livros em 1937 enquanto o Estado Novo queimava obras como as de Jorge Amado

Eis que, entre nós, eco da sanha nazista, emerge com fulgor o anti-intelectualismo. Nada mais oportuno para os agentes do obscurantismo do que detratar professores, artistas, jornalistas, gente que cria, critica e educa. Tenhamos juízo enquanto é tempo, lembremo-nos que tivemos Machado de Assis, Clarice Lispector, Vila Lobos, Tom Jobim e que temos ainda Chico Buarque de Holanda dizendo “Amanhã há de ser outro dia…” Abaixo os “idiotas da aldeia”, pelo fim dos ventríloquos das redes sociais, e combatamos a censura.