E como deixar de recorrer a Fernando Pessoa que tinha mais de 70 pseudônimos

Aconteceu!… Em uma das poucas redes sociais à que me ligo, alguém querendo me saudar, gratuitamente, disse que me respeitava apesar de ser “de esquerda”, posição que segundo o enunciador eu assumiria “erradamente”. Sem bem entender do porquê, a afirmativa que caberia na moldura de pintura legítima me enquadrou com certa fatalidade. Fiquei pensando nos limites da classificação e, inquieto, troquei ideia com um confidente, algo na base do “você viu?”. Insatisfeito ainda, sem conformidade, resolvi divagar.

Logo me veio à lembrança uma frase esperta por certeira do psicólogo James Hillman: “nós não nos conhecemos, nós nos descobrimos”. Foi um bom começo. Permiti-me vislumbrar um abismo íntimo e resolvi visitá-lo em mergulho: por que afinal uma afirmativa ingênua, dita em situação trivial, teria me atingido tanto? O que conteria de tão venenoso a palavra “esquerda”? Quais as implicações ofensivas dessa percepção que, afinal, responde sim a um juízo cabível? É claro que não sou de direita e que maldigo aquela catilinária tosca. Juntei fragmentos e propus contraste: acredito na redondeza da terra, aposto na vacinação obrigatória, me devoto à cultura e à ciência, considero a Constituição e as regras estabelecidas, e prezo demais os protocolos da boa educação, da política avessa às milícias e sou contra ódio ideológico, fake news, gabinete do crime. Mais: vivo inconformado com figuras que se ufanam por ser conservadoras, defensoras de supostos autoritários e ferrenhos detratores de tudo que diz respeito às mudanças e diferenças. Então?… Então por que minha impaciência em ser taxado de esquerda? Por que, se considerando as brutalidades da direita, não me contento em ser esquerda?

James Hillman: “nós não nos conhecemos, nós nos descobrimos”

Sou – e espero continuar sendo – contra simplificações. Gosto de causas complexas, de sinuosidades, de detalhes vistos no conjunto, de nuanças, de semitons, de teses elaboradas. Sim, devo admitir, há algo de barroco em minha interpretação pessoal e, pior, aprecio isso. Acatar tais variações, creio, me permitiu achar o fio da meada explicativa deste meu mal estar: sou muitos em sendo eu somente. E assim me redimo em Fernando Pessoa pensando nos meandros de seus heterônimos que, aliás, me ajudam explicar os muitos que há na singularidade de cada qual. Pessoa, “o poeta dos vários”, se manifestava em três vozes distintas, e, ainda que assinasse mais de 70 pseudônimos, três marcaram sua “poesência”, Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos, deste aliás brotou a joia na qual mais me pauto “não sei quem sou, que alma tenho/ quando falo com sinceridade, não sei com que sinceridade”, e, em “Tabacaria” pontificou “não sou nada/ nunca serei nada/ não posso ser nada/ à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

Ser múltiplo em um é dilema frequente em poetas que não fogem de argúcias. Neruda se situou num plural conveniente aos “muitos homens que sou, e nós somos/ não podemos nos assentar em apenas um/ eles estão perdidos em mim”. E como deixar a recorrência a Mario de Andrade se declarando “sou trezentos, trezentos e cinquenta”. Não será fátuo imaginar que todas essas menções exalam perfume filosófico derivado de Nietzsche que, na “A Gaia Ciência”, declarou-se “eu sou vários! Há multidões em mim. Na mesa de minha alma sentam-se muitos, e eu sou todos eles. Há um velho, uma criança, um sábio, um tolo” e, de maneira matreira, completava “Você nunca saberá com quem está sentado ou quanto tempo permanecerá com cada um de mim. Mas prometo que, se nos sentarmos à mesa, nesse ritual sagrado eu lhe entregarei ao menos um dos tantos que sou”. Como que dialogando com minha busca de exatidão política, o próprio filósofo continuou “entre tantos, um dia me descubro”. Sabe, é isso que perscruto, me descobrir e levar em conta a frase de Clarice que me redime: “não sou sempre flor/ às vezes espinho me define tão melhor/ mas só espeto os dedos de quem acha que me tem nas mãos”.

Nietzsche: “Eu sou vários! Há multidões em mim.”

Pois é, sou daqueles que duvidam da existência de uma esquerda efetiva no Brasil – basta olhar os lucros bancários – mas, mesmo desajeitado no que seria padrão simples, assumo estar à esquerda de tudo que a direita brasileira impõe. E quero ferir quem me simplifica. Busco então me situar na escalada de reflexões que vão além de polos que são antagônicos por extremos, sem mediações. Ainda bem que a poesia me salva e me ajuda entender a cromática variada em nuanças. Talvez não por opção pessoal, mas pelo exagero populista dado pela própria direita, a cada momento mais, vou me assumindo à esquerda. Esquerda sim, mas em movimento. Em construção. Entendo o mesmo Nietzsche quando dizia “é preciso ter asas, quando se ama o abismo”. E me atiro na busca de um lugar político complexo e carente de explicações que não cabem no simplismo elementar contido em ser de esquerda.