Os dentistas que me perdoem, mas detesto consultórios, sou daqueles que colecionam episódios dramáticos. Lembro-me do caso de uma agulha quebrada na gengiva de um paciente. Doutra feita soube de um profissional que ameaçava pacientes com máscara de formol caso não permitissem anestesias. Como esquecer de um menino que de amedrontado evacuou na cadeira do dentista que fez a família pagar por uma limpeza completa… Enfim, poderia listar casos e causos que, bem sei, não respondem à qualidade da maioria desses santos cuidadores de nossa saúde bucal e do sorriso de multidões.

Recentemente aconteceu um desses incidentes, deglutindo uma empada deliciosa não notei que a azeitona estava com caroço e ploc, meu dente fraturou. De volta ao consultório levei um choque com os custos. Não sou do tipo que questiona preços de trabalhos profissionais, mas não contive a surpresa. Será que ele sabe quanto eu ganho, pensei…

Acertei com a senhora secretária o primeiro horário. Confesso que sempre procuro ser o primeiro atendido, pois conheço a lógica de atrasos. Assim, segundo o acordo, no outro dia com a devida antecedência estava eu à porta do consultório. Sempre levo livro, pois eventualmente alguém puxa conversa tola. Passados alguns minutos fui alertado pela secretária sobre o atraso do dentista “preso no trânsito”. Abri o livro e dei sequência à leitura. Meia hora depois, novo aviso da impávida senhora que à essa altura já não achava tão bonita e nem tão prestativa. Continuei a leitura até que chegou novo paciente. Dado o bom dia convencional, sentou-se na poltrona ao lado e junto ouvimos a mesma loa, agora com um acréscimo informativo: “acidente no trânsito”.

Sem livro, sem tanta paciência o colega de espera puxou assunto “o senhor é daqui?”. “Sim, respondi com uma mexida de queixo. Insatisfeito ele proclamou que morava longe, no limite extremo da cidade. Sorri encabulado, pedindo socorro ao livro que, pobre, perdeu a concorrência com o senhor que, sem parar, começo maldizer a vida urbana: o barulho, a falta de estacionamento, o preço e péssima qualidade dos serviços. Fechei o livro trocando a curiosidade da trama bem trançada pela conversa do senhor que se declarou produtor rural. Mais minutos e novamente a secretária, cada vez mais feia, reafirmou o atraso.

Detratada a vida urbana, o companheiro de espera contrastava as agruras da cidade com as delícias do campo: sem poluição, silencioso, com pessoas cordiais e ar puríssimo. Ruminando meu silêncio, treinei a tal escuta privilegiada. Minhas preces foram atendidas finalmente e com as desculpas do dentista me aprontei para a consulta. Intrépido, o colega insistiu com uma observação tão doída quanto os procedimentos que se seguiram: “vamos continuar a conversa depois”. Devo dizer que não foram apenas desencontros contrastantes, soube que ele também tinha um dente quebrado, que torcia pelo mesmo time que eu, que era devoto do mesmo São Jorge – e olhe que este último quesito é sagrado. Enfim, terminada sessão, ao sair recebi um cartão de visita e um convite “olha, sábado vou fazer uma churrascada na fazenda gostaria que fosse”. Educado, dei-lhe meu número de telefone certo que nunca mais o veria. No fim da tarde, porém, ele liga reforçando o convite. Pensei que poderia ser interessante, topei… começaram-se os problemas.

Como ir até o local fora da cidade se não tenho carro? Liguei para o taxista que me atende e soube que estava no Nordeste. Pensei no UBER que tem serviço de hora marcada, mas fiquei perplexo ao saber que não fariam aquele percurso. Que bom, pensei, tenho desculpa. Solícito, o amigo replicou “não seja por isto, tenho convidados daí e posso tratar do transporte”. Deu certo, ou melhor, parcialmente certo. Tratava-se de uma caminhonete já com 4 passageiros no único banco. Restou-me a carroceria, sentado num saco de batatas entre engradados de cerveja. Supus quebrar os demais dentes de tanto que chacoalhava.

Antes da travessia vivi outro dilema: como me vestir. Verão, achei que bermuda, camiseta e sandália e quepe estaria de bom tamanho. Desapontado constatei que todos os homens estavam de jeans, camisa xadrez, chapéu e botas. Mais desapontamentos: levei de presente um livro. Desagrado explícito. Mas o pior estava por vir. Sem muita familiaridade circulei por grupos que discutiram: arroba de gado, sementes transgênicas e invasões do MST, tratei de me bandear para as rodas femininas que por sua vez maldiziam empregadas ingratas, falta de água e esgotos nas casas e distância das escolas.

Que me restava? Ajudar o churrasqueiro. Foi um desastre, pois além do calor insuportável, não conseguia dar vasão à fila de mal-educados, muitos já bêbados e ultrapassando os limites da conveniência. Sabe que mais? Tive que esperar até o último comensal. Estava de carona… Moral da história, não quebre o dente…