Conceitos que têm origem na filosofia e nas ciências sociais ganham novos sentidos num ‘uso vulgar’ disseminado

Esquerda e direita têm adotado conceitos que têm origem na filosofia e nas ciências sociais, mas ganham novos sentidos num “uso vulgar” disseminado. Muitas vezes, esse uso vulgar, popular, é muito mais relevante politicamente que o original, mais sofisticado e mais nuançado, de que deriva. Quando a política brasileira me der um respiro, pretendo, neste espaço no GLOBO, explorar as origens e desenvolvimentos de alguns desses termos. Começo por um usado pela esquerda: “lugar de fala”.

Lugar de fala, tal como empregado no debate político vulgar, consiste na ideia de que, em assuntos que envolvem opressão, apenas pessoas de grupos oprimidos devem falar. Quando discutimos o machismo, cabe a mulheres a palavra e, quando falamos de racismo, o palco deve ser cedido a negros.

Diferentes ideias parecem ter impactado esse uso mais disseminado de “lugar de fala”. Uma delas, derivada da “epistemologia feminista”, argumenta que o lugar social de alguém afeta seu entendimento, sua compreensão das relações de opressão. Por isso uma mulher estaria numa condição melhor para compreender o machismo, pois tem sensibilidades, perspectivas e experiências a que um homem não tem acesso.

Mas o “lugar de fala” não tem sido empregado para dizer que uma mulher tem mais autoridade para falar de machismo. Tem sido empregado para dizer que apenas uma mulher pode falar sobre machismo.

Esse uso parece ser derivado de uma reflexão da feminista Linda Alcoff. Num artigo famoso (“The problem of speaking for others”), ela argumenta que as hierarquias sociais produzem efeitos de verdade diferentes. A posição social de quem fala produz determinado efeito de verdade no ouvinte. O discurso de um homem branco, mais velho e rico tende a ser mais respeitado e considerado “mais verdadeiro” que o de uma mulher negra e pobre, de quem o preconceito espera ignorância e desequilíbrio.

Assim, quando um homem branco se põe a criticar o machismo, entra em contradição performativa. Embora seu discurso possa ser crítico ao machismo, ele entra em contradição com sua performance discursiva, apoiada nos efeitos de verdade do machismo, da ideia de que homens brancos de meia-idade são os porta-vozes da verdade esclarecida. Quando se discute o machismo, segundo essa visão, não basta o discurso ser antimachista. Ele precisa ser enunciado por uma mulher. O mesmo vale para os discursos antirracistas, que só deveriam ser enunciados por pessoas negras.

Uma consequência involuntária da exigência de lugar de fala para discutir a opressão é que pessoas dos grupos opressores se desvinculam do debate sobre machismo, racismo ou LGBTfobia. O enfrentamento da opressão e da discriminação vai deixando de ser um problema de todos nós e fica restrito a um recanto resguardado onde só atuam os oprimidos.

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Além disso, a exigência de determinado “lugar de fala” para participar da discussão de certos temas modifica uma longa tradição racionalista que considera inválidos os argumentos ad hominem, aqueles que, fugindo do debate, desqualificam o interlocutor.

Desde a Antiguidade, o recurso a argumentos ad hominem é considerado ilegítimo, fora das regras do debate civilizado. Mas agora normalizamos que certos discursos sejam desautorizados porque são enunciados por alguém que não está implicado no tipo de opressão discutida. Inversamente, podemos pensar que o recurso ao lugar de fala também “qualifica” a posição de quem, em outros tempos, não estaria socialmente autorizado a se pronunciar.