Outro dia, numa discussão acalorada daquelas em que ninguém escuta ninguém, um sujeito soltou para o outro: “pare com essa presepada!”. A frase cortou o ar, desafiando a memória. Na hora, deixei de prestar atenção na briga e fiquei só com a palavra rolando na cabeça: presepada… Quase ouvi minha infância me chamando pelo nome. Saí de perto, guardei a expressão no bolso da saudade e, quando cheguei em casa, e como era dezembro, deixei a lembrança trabalhar, porque em mim, a recordação é a única funcionária que nunca pede férias.
Veio então o vento leve dos velhos natais em família, de um tempo em que dezembro começava quando minha mãe tirava do armário uma caixa velha, forrada com papel que já tinha desistido de ser colorido. Lá dentro morava o presépio. Era o grande momento. Mamãe, sempre zelosa, nos preparava como quem prepara um ritual. Nada de pressa, todo cuidado. Havia data marcada, ordem estabelecida, função para cada um. Cada peça era retirada com a solenidade de um tesouro arqueológico. E nós, pequenos, víamos naquilo não só bonecos, mas personagens vivos de um ritual que parecia nos enraizar na família, no tempo e no mundo.
O presépio, convenhamos, é o símbolo mais solene e ao mesmo tempo mais comovente do Natal. Ele representava a simplicidade absoluta: um casal pobre, um estábulo quase improvisado, animais de fazenda. E era, em muitas casas, cuidadosamente montado com miniaturas às vezes caríssimas de cerâmica, às vez de barro ou resina, de gesso, madeira. E até o musgo de mentira se compunha com uma estrela solitária. Tudo isso para enfeitar uma cena que, por onze meses do ano, dormia embolorada no armário, espremida entre caixas de fantasias velhas e uma coleção de enfeites que ninguém sabe de onde veio.
Havia algo de mágico na montagem. A cada peça colocada, mamãe narrava a história com gravidade. José sempre parecia cansado, Maria sempre calma, e o Menino Jesus surgia só na hora certa, o último a entrar em cena e, por incrível que pareça, o primeiro a sumir de novo assim que janeiro chegava ao meio. Talvez fosse tímido, talvez fosse levado, ou talvez preferisse guardar sua santidade longe da nossa bagunça. E havia complemento: os Reis Magos. Esses eram um caso à parte. Atrasados, metódicos, quase burocráticos: apareciam só no dia 6 de janeiro. Mas, na nossa infância, essa espera fazia parte do encanto. Eles vinham do fundo da caixa, envoltos em papel-jornal, com cara de quem atravessou o Oriente inteiro para chegar até nossa sala.
O presépio é, no fundo, uma pequena crise existencial montada em cima de palha artificial. Ele nos obriga, mesmo que de leve, mesmo que sem querer, a contemplar, por algumas semanas, um recém-nascido deitado num berço de feno. Enquanto isso, ao redor do presépio real da sala, a vida moderna levanta sua tenda: laços dourados, fritura no óleo, árvore de plástico.
É uma espécie de contraste poético: celebramos a humildade enquanto compramos presentes caros, celebramos o silêncio da noite enquanto disputamos vaga no shopping, celebramos a pobreza voluntária enquanto brigamos por aquele peru que insistimos em chamar de “tradição”.
Mas o que realmente me encantou, naquele momento em que ouvi “presepada” como quem ouve um sino distante, foi perceber a beleza da língua, essa danada que pega um ritual doméstico, carregado de afeto, e o transforma numa palavra de bronca, quase um palavrão raivoso. É como se o português, com sua mania de fazer bagunça, tivesse decidido que o presépio, tão central no Natal, tão meticuloso, tão cheio de detalhes… seria também o nome de qualquer trapalhada humana. O presépio é isso: um retrato da simplicidade que nunca conseguimos reproduzir, mas que continuamos tentando, peça por peça, ano após ano.


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