Na imagem acima está João Guató, 73 anos em dezembro de 2020, em meio a cinzas e troncos queimados em seu território (Foto: José Medeiros/Amazônia Real)
José Mujica, o ex-guerrilheiro tupamaro que virou presidente e, depois, monge camponês com Honda Civic na garagem e ideias de espantar banqueiros, declarou o que todo velho lúcido e desenganado deveria dizer: “Deus não existe, mas espero estar errado”. Essa frase, num país latino-americano, é mais escandalosa do que qualquer maracutaia do Congresso — e infinitamente mais honesta.
Um Velho amigo trotskista — que, se tivesse conhecido Mujica, o teria chamado de “leninista melancólico com cara de cacto florido” — aplaudiria de pé. Mujica está morrendo, o câncer no esôfago se alastrou para o fígado, e ele simplesmente “não vai se tratar”. Meu corpo não aguenta.” Que contraste abissal com os nossos figurões, que driblam a morte com próteses, convênios e helicópteros, não por desejo de viver, mas por pavor de encarar o fim como ele é: um ponto final sem legenda.
Mujica, aos 89 anos, escolheu despedir-se cavando hortas. Vai cuidar de seu sítio, ali em Rincón del Cerro, enquanto o tempo cuida de desfazê-lo. Nada de quimioterapia. Nada de dramas. Só o silêncio das folhas e, talvez, a ternura do cachorro que o acompanha entre as ferramentas.
Há algo de profundamente grego em Mujica: essa serenidade trágica, esse senso de destino aceito, essa ética da liberdade que dispensa as firulas da teologia. Ele não acredita em Deus, mas gostaria que Ele existisse. Não para se salvar — Mujica nunca foi homem de pedir salvação —, mas porque “seria bonito estar errado”.
É raro ouvir de um homem público, ainda mais na América Latina, que a vida não é um projeto de poder, mas uma aventura. E que a democracia começa não no voto, mas no respeito por quem pensa diferente. Mujica, vejam só, está nos ensinando a morrer sem perder a ternura — e, mais do que isso, a viver sem perder o senso de proporção.
Enquanto por aqui nossos ex-presidentes escrevem ficções de autojustificação, ele escreve um epitáfio com cheiro de terra molhada e frases curtas. Disse que a vida passou voando, que estamos obcecados por fazer, fazer, fazer — e esquecemos de ser. Ele não está falando só para os uruguaios. Está falando para todos os latino-americanos que acham que felicidade é PIB.
Pepe Mujica não quer beatificação, nem está flertando com o misticismo de boutique. Ele só quer morrer como viveu: livre…
E, quem sabe, quando chegar a hora, descobrir que estava errado — e que existe, sim, um Deus esperando com um mate quente e um punhado de sementes na mão.
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