Romeu e Julieta, um casal perfeito de cisnes, abatidos por vândalos

Com certeza, os cisnes estão entre os animais mais celebrados da História. Em todos os tempos e quadrantes, figuram como símbolos de beleza e altivez. O porte elegante e os movimentos delicados dimensionam a soberania expressa em grifes de roupas, marcas de perfumes, selos de lugares finos. E o que dizer da insistente presença em prosa e versos, em canções românticas e até militares, na pintura, escultura, em objetos de adornos domésticos? A parceria harmônica certamente é atributo que os qualificam como emblema de amores estáveis. Não é sem razão que os longos pescoços entrelaçados atestam almas gêmeas a ponto de serem considerados nobres, dignos de morar em castelos ou lugares aprazíveis, perfeitamente compatíveis com cenários dos contos de fadas.

Curiosamente, dizem os paleontólogos que os cisnes são antiquíssimos, compondo uma linhagem de mais de 130 milhões de anos, que se afinou em mutações das quais resultaram seis espécies. Uma das referências à soberba ave remete ao trato dado pela mitologia grega onde Leda, a linda mulher do rei de Esparta, por quem Zeus se apaixonou encantando-se, para seduzi-la, em um belíssimo cisne. Desde o Renascimento italiano, a exaltada lenda clássica se demudou em tema cativante com exemplos singulares na história da pintura, sendo que uma das mais intrigantes remete ao único nu de Leonardo Da Vinci, representado em tela desaparecida. De tal forma, como motivo, Leda e o cisne têm sido apreciados que mais tarde Ulpiano Checa, Salvador Dali e Paul Cézanne, entre outros, produziram suas versões.

Leda com o cisne, pintada por Leonardo da Vinci

A Literatura em diferentes níveis festeja os cisnes presentes em obras para crianças como “O patinho feio” de Andersen, “os seis cisnes” dos irmãos Grimm, até o Patrono da série Harry Potter. Nas Letras tudo se potencializou a partir do “Cavaleiro dos cisnes”, conto medieval relativo ao um sedutor herói que, para proteger a amada, exigia que seu nome jamais fosse pronunciado – mais tarde tal enredo inspirou, em 1848, Wagner na ópera Lohengrin. A música aliás se tornou um dos mais prestigiados veículos de divulgação da “mitologia císnica”, conjunto de tramas baseadas na metáfora do esforço de alguém para derradeiro ato grandioso. Segundo lendário universal, a frase “canto do cisne” foi proferida por Sócrates em 399 a. C. que antes de ingerir cicuta teria dito “quando sentem a hora da morte se aproximar, essas aves, que durante a vida pouco cantavam, exibem então o canto mais esplêndido, mais belo; eles estão felizes de ir ao encontro do deus do qual são servidores”.

As variações sobre símbolos permitidos pelos cisnes são assombrosas, uma delas foi popularizada graças a matriz eslava manifestada em dança que conta do feitiço de uma princesa transformada em cisne negro que, para livrar-se da maldição, precisava ser purificada a fim de viver um grande amor. Coreografada para Anna Pavlova – uma das mais importantes bailarinas de todos os tempos – e devido a recepção do solo da composição de Camille Saint-Saens, o balé se tornou um dos espetáculos mais cultuados do século XX, musicado por Tchaikovsky em 1876.

Julieta com sua ninhada no Parque Guinle, na Cidade Maravilhosa

Uma avalanche de flashes me veio à lembrança ao ler sobre o arrepiante evento ocorrido no Rio de Janeiro, no Parque Guinle, no último domingo de agosto deste 2023. Em um dos recantos residenciais mais aprazíveis da Cidade Maravilhosa, num simpático lago, cisnes enfeitavam a paisagem. Noticiaram os jornais do dia seguinte que um macho sobrevivente de viuvez precoce, motivada por crime ocorrido em 2019, também havia se tornado vítima fatal de outro delito. O conjunto de informações sobre o triste episódio permite digressões que extrapolam os limites da sensibilidade estética. Pior, dilatam possibilidades de se considerar a desumanização de quantos perdem o senso do bem coletivo e banalizam a vida social.

Há lances queimantes no triste fato. Evocando Shakespeare, os dois cisnes matrizes tornaram-se conhecidos como “Romeo e Julieta” – reza o fabulário que chegaram no Dia dos Namorados de 2015 – e, vida imitando a arte, com intervalo respeitável, replicaram o fim trágico do casal veronês. Há quatro anos, a fêmea foi atacada por um cão e, ante a valente defesa dos rebentos, a mãe Julieta teve o pescoço cortado. Como entre os cisnes não há incesto, o viúvo teve filhotes com uma de suas crias, Goiabinha, com quem vivia familiarmente. Pois bem, no fatídico domingo, um delinquente cruelmente apunhalou Romeu. Visto, logo denunciado e preso, a comoção tomou conta de quantos choraram a história que sugere moderna atualização do lendário: a quebra da ética romântica em favor do enfraquecimento da sensibilidade pública. Seria bom não deixar o caso morrer também, pelo menos respeitaríamos significados que permitem pensar em lugares para os filhos de Romeus e Julietas, em parques e jardins onde ainda os contos, lendas, tradições sejam permitidos.