Viuvez é “como um oceano de detalhes: o som de um passo, a forma de uma palavra, a textura de uma roupa” (Roland Barthes)

Para Edmauro, meu interlocutor

Há algo estranho em se tornar viúvo: a dor inicial, avassaladora, é algo que a sociedade até entende e acolhe. As primeiras semanas são um limbo que a família e os amigos te cercam, alimentam-te, choram contigo. Você é um objeto de luto, e o mundo lhe dá o tempo e o espaço para que você ocupe esse papel. Mas depois que o passamento se esvai e o tempo começa a esticar, o acolhimento social se desfaz. A estranheza reside no fato de que, em uma sociedade que equipara a solidão ao sofrimento, não há espaço para ser viúvo sem ser, necessariamente, um sofredor.

Você se torna um incômodo, um corpo em um lugar onde não deveria estar sozinho. A casa, antes um santuário de duas almas, agora é um eco vazio. Você caminha pelos cômodos e as coisas parecem mudar de lugar por conta própria. A cadeira favorita, a escova de dentes ao lado da sua, as meias largadas no chão. Tudo carrega um peso que só a ausência pode criar. C.S. Lewis, em “A Sombra do Luto”, descreve essa experiência com uma honestidade brutal: o luto não é uma emoção única, mas uma neblina que distorce a realidade. Ele escreve sobre a dor como algo quase palpável, uma sensação de que as entranhas foram reviradas, deixando um vazio doloroso no lugar. É quando a pressão para “seguir em frente” começa. Com as melhores intenções, eles sugerem que você saia, conheça pessoas, preencha o “buraco”. Eles não veem a sua solidão como um estado, mas como um problema a ser resolvido. Eles não entendem que, para você, o silêncio da casa não é vazio, mas preenchido com a memória de uma presença ausente.

CS Lewis: “o luto não é uma emoção única, mas uma neblina que distorce a realidade”

Joan Didion, em seu livro “O Ano do Pensamento Mágico”, fala sobre a absurdidade desse período, a negação do luto que se manifesta em gestos irracionais. O ato de não doar a roupa do parceiro, a espera inconsciente pelo retorno, a crença mágica de que se a casa for mantida como estava, nada realmente mudou. É a luta entre a realidade e a mente, que se recusa a aceitar que a história do seu amor teve um ponto final. A sociedade, com sua pressa em curar, quer pular essa fase mágica e ir direto para a resolução. Mas não há atalho para a aceitação.

O viúvo se torna um estrangeiro em seu próprio ambiente social. Os convites para jantares de casais cessam. Você é um lembrete incômodo da fragilidade da vida. A sua solidão, que para você é um estado de introspecção e, por vezes, até de paz, é interpretada por eles como um sinal de que você está “sofrendo demais”. Há um desconforto coletivo com a ideia de que alguém possa estar sozinho sem estar desesperado. Como se a ausência do outro não pudesse ser preenchida pela riqueza da própria memória. Em “As Horas Nuas”, de Lygia Fagundes Telles, há a ideia de que, após a partida de um grande amor, restam “horas nuas” – um vazio que não é a ausência de algo, mas a revelação do que realmente somos sem a presença do outro. É um estado de ser, não um estado de falta. Essa é a grande lição que a sociedade não consegue absorver: o viúvo não é um ser incompleto. Ele é um ser em processo de reconstrução, aprendendo a habitar uma solidão que pode ser rica.

“a partida de um grande amor é a revelação do que realmente somos sem a presença do outro” (Lygia F Telles)

Roland Barthes, em seu “Diário de Luto”, escreve sobre o luto como um conjunto de fragmentos, notas íntimas sobre o cotidiano da perda de sua mãe. Ele descreve a dor não como um rio, mas como um oceano de detalhes: o som de um passo, a forma de uma palavra, a textura de uma roupa. A dor está nos pequenos nadas, não nos grandes dramas. O viúvo, então, aprende a viver entre esses pequenos nadas, reconhecendo a presença do ausente nas minúcias da vida.

No fim das contas, a estranheza de ser viúvo é que a sua jornada de luto se torna uma jornada para o entendimento de si mesmo, mas em um mundo que prefere te ver como uma peça quebrada. A sociedade quer te consertar, mas você está aprendendo a conviver com as rachaduras. A sua dor é só sua, e a sua solidão, por mais que tenha vindo da perda, não precisa ser vazia. E é nessa descoberta que reside a mais profunda e estranha libertação. Você não é um ser incompleto, apenas um ser que aprendeu a dançar com uma lembrança.