De vez em quando, a gente respira fundo e tenta entender, mas tem hora que não dá. Para mim, é simplesmente inacreditável que o Brasil, em pleno 2025, ainda flerte com o avesso da civilidade, pensando em inaugurar rodeios ou, pior, em desenterrar a barbárie das touradas. Basta um olhar para a Europa, berço de tantas tradições que um dia exaltaram o embate entre homem e touro, para perceber o clima de mudança. Lá, a “fiesta brava” definha. Cidades como Barcelona já baniram as touradas em 2010. Nas Ilhas Canárias, o veto veio em 1991. Testemunhei emocionado em Valladolid o esforço para a extinção da prática. A cada ano, novas praças se fecham e o apelo pela dignidade animal ressoa nas ruas com ativistas incansáveis denunciando a crueldade inerente a cada estocada de espada. O touro, nesse picadeiro de horror, não é um adversário, mas uma vítima predeterminada, submetida a um estresse indizível, ferimentos e, por fim, a uma morte lenta e angustiante.

Enquanto o mundo civilizado, incluindo grandes nações com raízes profundas na tauromaquia, avança para o desuso de tais shows, o Brasil parece flertar com um retrocesso perturbador. Projetos de lei e iniciativas locais para a construção de novas arenas de rodeio argumentam que são “tradições culturais”, mas isso já não se sustenta diante do sofrimento explícito imposto aos animais. O Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento de que práticas cruéis não são protegidas pelo direito à cultura quando violam princípios éticos e legais (ADI 4.983/MT). Entendeu ou precisa desenhar? Nenhuma herança cultural justifica a tortura.

As campanhas contrárias a rodeios e touradas no Brasil ganham força, unindo protetores de animais, ambientalistas, juristas e cidadãos comuns. O clamor é claro: o sofrimento dos touros, cavalos e demais animais envolvidos nesses espetáculos é inegável. Nos rodeios, os bois são induzidos ao pânico e à exaustão por laços e arreios apertados, que lhes causam dor intensa e podem provocar lesões graves, fraturas e até a morte. Os cavalos são submetidos a estresse extremo e riscos de acidentes. A Lei 10.220/2001, que regulamenta rodeios, é insuficiente para coibir a violência intrínseca a essas práticas. Não há “arte” na coação, nem “esporte” na imposição de medo e dor a um animal.

E tem a plateia. Essa gente que aplaude, vibra, se deleita com o sofrimento alheio. O que acontece na cabeça de quem acha isso divertido? A psicologia social já mostrou que espetáculos que normalizam a agressão dessensibilizam a gente, banalizam a dor, reforçam comportamentos que não queremos na nossa sociedade. Aplaudir um touro sendo espetado ou um boi caindo exausto no rodeio não é celebrar “habilidade”; é celebrar a covardia, a subjugação de um ser que não tem como se defender. Que sadismo coletivo é esse, mascarado de folclore?

A justificativa de que esses eventos geram turismo e arrecadação para as prefeituras é, no mínimo, desavergonhada. O argumento econômico é juridicamente frágil, pois o interesse público não pode legitimar atividades ilícitas (art. 170, CF/88), muito menos aquelas que ferem a moralidade administrativa e os princípios da proteção animal. Fomentar um “turismo sádico”, que se alimenta do sofrimento alheio, é uma mancha na imagem de qualquer cidade que aspire lugar respeitável. A própria Constituição Federal, em seu art. 225, impõe ao Estado e à coletividade o dever de proteger os animais. Decisões como a do TJ-RS (Ap. 70087605094) já afirmaram que rodeios violam esse mandamento quando submetem animais a situações de estresse extremo e lesões. Municípios que incentivam tais práticas sob o pretexto de atrair turismo estão, na verdade, fomentando um ciclo perverso de violência, manchando a imagem do Brasil perante o mundo, especialmente quando o país é signatário de tratados como a Declaração Universal dos Direitos Animais (UNESCO/1978). Prefeituras que autorizam novos rodeios ou touradas não apenas desrespeitam a legislação ambiental, mas também assumem uma postura regressiva, ignorando a tendência global de abolição dessas práticas. Se a cultura evolui, o ordenamento jurídico deve acompanhar, assegurando que nenhuma tradição se sustente sobre o sofrimento. Legisladores e juízes devem agir com base em princípios éticos, não em apelos passionais de uma minoria que ainda encontra prazer na dor alheia.

A verdadeira cultura não sangra. Não tortura. Não se diverte com o desespero. E o Direito, como expressão da justiça, não pode compactuar com a barbárie. O lugar do sofrimento animal não é no picadeiro, mas sim no passado, como um triste lembrete do que a humanidade foi capaz, mas que não mais aceita ser cruel, insensível e capaz de trocar a dor por um punhado de dinheiro vindo de um turismo torpe.