“Doutor”, O Velho”, “Gegê” foram alguns dos apelidos de Getúlio Vargas, o “Pai dos Pobres”
No Brasil, apelidos são muito mais do que simples reduções de nomes: são instrumentos de aproximação, sátira, crítica e afeto. A mania de apelidar é uma espécie de vício nacional, herança de uma sociabilidade que desconfia da solenidade. Entre nós, ninguém escapa da arte de “batizar de novo”, da família à política, do boteco à presidência. É o modo brasileiro de afirmar intimidade e, ao mesmo tempo, exercer julgamento.
Desde os tempos coloniais, os apelidos servem como espelho da cultura popular. Às vezes são diminutivos ternos: “nenê”, “dindinha”, “voinha”, outras, expressões de ironia: “Zé Cachorro”, “Mané Burro”, “Bode Velho”. Os bichos, as deformações carinhosas e as gozações são ingredientes da nossa gramática afetiva. Nomear é criar uma relação, e apelidar é dar-lhe cor e sabor.
Na política, isso se torna ainda mais revelador. A forma como o povo chama seus governantes diz muito sobre a temperatura emocional do país. Getúlio Vargas, por exemplo, foi “O Doutor” entre os próximos, “O Velho” para os opositores e “Gegê” para o povo. Esse apelido traduzia um sentimento de proximidade que o transformava de ditador em “pai dos pobres”. A ternura do “Gegê” neutralizava a frieza do “Vargas”, como se o nome formal fosse uma couraça e o apelido, um abraço.
O mineiro Juscelino sempre foi o “JK”, criador de Brasília
Outros seguiram esse ritual da familiaridade: Juscelino era “JK”, mas também “Juscelino”, dito com leveza; Jânio, apenas “Jânio”; Itamar, simplesmente “Itamar”. João Goulart tornou-se “Jango”, apelido que cabia em qualquer conversa de botequim e refletia seu modo afável. Já Fernando Henrique Cardoso, com seu “FHC”, soava distante, quase corporativo, como um código de barras. E Collor, sem apelido, permaneceu frio, eleito pelo povo, mas sem alma popular. A ausência de apelido, nesse caso, foi o apelido máximo: o do desamor.
Durante a ditadura militar, a formalidade dominou. Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo, nomes longos, duros, de quartel. O sobrenome, usado como brasão, servia de escudo contra qualquer tentativa de familiaridade. Figueiredo chegou a pedir que o chamassem de “João”, mas ninguém ousou. O país, então, falava com os generais, não com os homens.
Jango e sua esposa Maria Thereza no comício de de 13 de março de 1964
Com o retorno da democracia, a política voltou a ganhar apelidos de verdade. E foi então que surgiu um caso singular: Luiz Inácio da Silva, o “Lula”. Diferente dos anteriores, “Lula” não nasceu do marketing nem da imprensa, mas da luta sindical, das portas de fábrica, do chão do povo. O apelido veio antes do poder. Tornou-se símbolo de origem e resistência. Quando chegou à presidência, o apelido sobreviveu. Ninguém o chama de “Luiz Inácio”; é “Lula” até para os que o detestam
No outro extremo, Jair Bolsonaro transformou seu nome em marca. Diferente de Lula, o apelido “Mito” não nasceu nas ruas, mas nos escritórios de marketing político. Foi um artifício fabricado para erguer uma figura sobre-humana, imune a falhas. “Mito” não é apelido é um rótulo de veneração. Ao contrário do afeto espontâneo de “Gegê” ou da intimidade de “Jango”, “Mito” é palavra que impõe distância, não aproxima. É um título sacralizado, forjado para substituir o homem pela lenda.
Lula, de origem sindical, era o “Baiano” para os mais chegados
Ainda assim, a força da cultura popular não perdoa exageros. O mesmo povo o converteu, nos memes. O apelido virou espelho invertido: quanto mais os fiéis o entoavam em tom messiânico, mais os críticos o transformavam em deboche. O próprio clã Bolsonaro tentou reproduzir a fórmula com os filhos numerados: “01”, “02”, “03”, “04”, mas o Brasil, irreverente como sempre, respondeu com o humor que lhe é natural. Eduardo virou “Bananinha”, um apelido que, entre zombaria e duplo sentido, gruda com a força do ridículo.
“Mito” foi um apelido que não veio das ruas e não pegou
Enquanto isso, Lula permaneceu sendo Lula — apelido que já se confunde com o nome do país. A diferença entre “Lula” e “Mito” é a mesma que existe entre o apelido que nasce do afeto e o que é imposto pela propaganda. Um é humano, o outro é de mármore. Lula é o trabalhador que virou presidente. Bolsonaro é o personagem que tentou virar mito, mas terminou reduzido a caricatura. No fim das contas, os apelidos continuam sendo a mais precisa ferramenta de análise social do Brasil.
Se a história ensina algo, é que nenhum político sobrevive sem apelido, mas só os verdadeiros resistem no coração do povo. E, nesse quesito, o Brasil continua mestre em dar nome aos bois, com ironia, afeto e precisão cirúrgica. Afinal, por aqui, o apelido nunca é apenas um nome: é um veredito.




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