Para meu amigo Evaldo Vieira
Uma visita que fiz a Barcelona em 2005, para além do esperado encontro acadêmico, se transformou em uma imersão na complexa e vibrante geografia política da cidade. Longe dos roteiros turísticos, fui conduzido por colegas a uma zona de conhecimento inesperado: um encontro organizado pela Virus Editorial, uma casa publicadora de livros devotada às causas anarquistas. A experiência foi uma verdadeira jornada, daquelas que questionam certezas e forçam a reflexão. Mais que a distribuição gratuita de livros e as falas libertárias, o que me capturou a atenção foi um painel com frases soltas, verdadeiros manifestos de resistência. A análise dessas assertivas me forçou a confrontar as profundas contradições de um projeto anarquista que busca florescer em uma sociedade estruturalmente capitalista.
A primeira frase, “mais vale um mau livro que livro nenhum”, atingiu-me como um aforismo. A princípio, o senso comum acadêmico, tão afeito à curadoria e à validação da qualidade, exigiu um momento de meditação. Mas, com a ajuda de um café, a clareza veio. A frase não era sobre a estética ou a erudição da obra, mas sobre o ato político da disseminação do conhecimento. Em um mundo onde o livro é uma mercadoria, onde o acesso à informação é mediado pelo preço e o lucro do mercado editorial, a prioridade não é a perfeição, mas a existência. Um “mau livro” que circula livremente e alcança as mãos de muitos é uma vitória incontestável sobre o “livro nenhum” que permanece inacessível na prateleira de uma livraria, com um preço proibitivo. Era uma declaração de guerra contra a comodificação do saber, defendendo que o valor de um livro reside em sua capacidade de semear ideias, e não em seu valor de mercado.
Satisfeito com o desdobramento da primeira afirmativa, meu senso de segurança desmoronou diante da segunda, mais arrebatadora: “ninguém primeiro”. A frase, concisa e radical, demandou outro café e me lançou a um turbilhão de perguntas. Falava-se de uma competição sem vencedores? Do fim das aparelhagens de concorrência que moldam o capitalismo? Ou seria uma crítica mordaz à meritocracia? A resposta, em sua essência, parecia ser todas as anteriores. A afirmação “ninguém primeiro” é a mais pura negação da lógica capitalista de acumulação e hierarquia. Em um sistema que celebra o “vencedor”, o “pioneiro”, o “empreendedor de sucesso”, essa frase é um ato de subversão. Ela não defende que todos sejam “segundos”, como a lógica binária do mercado sugeriria, mas que se dissolva a própria ideia de uma corrida. O objetivo não é ser melhor que o outro, mas construir coletivamente. A ênfase é na horizontalidade, na autogestão e na colaboração mútua.
No entanto, a mais profunda reflexão sobre o projeto da Virus Editorial reside na sua contradição existencial. Um projeto anarquista, por definição, opõe-se às estruturas de poder e ao sistema capitalista. Mas como uma editora, por mais alternativa que seja, sobrevive sem entrar em contato com o mercado? Eles precisam de papel, tinta, equipamentos, e os aluguéis em Barcelona, mesmo para espaços ocupados, implicam custos e negociações. A própria distribuição de livros, mesmo que gratuita, exige uma infraestrutura que, em última instância, se apoia sobre o sistema que busca subverter. A Virus Editorial se encontra em uma aporia: para resistir ao capitalismo, ela precisa existir em seu interior, navegando e negociando com suas regras, mesmo que de forma simbólica. O paradoxo é o seu motor: a resistência se dá no ato de criar uma brecha dentro do sistema, um pequeno enclave de valores coletivistas em meio a um oceano de individualismo.
Essa tensão é visível em outros espaços de Barcelona, como as cooperativas de moradia e os centros autogeridos como Can Batlló, que transformam fábricas abandonadas em hubs de cultura e colaboração. Esses locais são a materialização da ideia de “ninguém primeiro”. Neles, a tomada de decisões é horizontal, os recursos são compartilhados e o sucesso é medido pela vitalidade da comunidade, e não pelo lucro. No entanto, a sobrevivência desses projetos é uma luta diária contra as forças do mercado imobiliário e a constante ameaça da gentrificação.
A experiência em Barcelona, portanto, foi um lembrete de que o anarquismo não é uma utopia distante, mas uma prática diária de resistência, cheia de complexidades. As frases no painel da Virus Editorial não eram meros slogans; eram manifestos radicais contra a meritocracia e a comodificação do saber. Elas nos forçam a questionar o “vencedor” e a celebrar o coletivo, mesmo que a luta para sustentar essa visão seja travada no terreno do próprio inimigo. O projeto de Barcelona é, assim, uma prova de que a utopia pode ser real, mas que sua existência é, por essência, uma constante e paradoxal batalha.
No Comment