Aviso sinistro: as bombas lançadas em Hiroshima e Nagasaki mataram mais de 200 mil pessoas em 1945
Para Paulo de Tarso Venceslau
Nascemos ao som dos noticiários da Segunda Guerra Mundial, numa era de transformações sem precedentes. Somos a geração que hoje supera a linha das oito décadas de vida, testemunhas oculares da mais acelerada revolução tecnológica da história. Somos, pode-se dizer, a Geração do Adeus – despedimo-nos do mundo que conhecemos, de entes queridos e, conscientemente, de uma estrutura social que se reorganiza de modo radicalmente diferente.
Nossa infância foi sonorizada pelo rádio de válvula, esse móvel imponente que trazia o mundo para dentro de casa através da imaginação. Na adolescência, testemunhamos o milagre da televisão – primeiro em preto e branco, depois em cores – que transformou radicalmente nossa percepção da realidade. O cinema, que conhecíamos como arte silenciosa, ganhou voz, cor e até dimensões, dos tecnicolores gloriosos às promessas tridimensionais.
A evolução da comunicação foi igualmente radical: do telefone de disco fixo no corredor – onde chamadas de longa distância eram um luxo planejado – aos telemóveis que hoje colocam o conhecimento global na palma da mão. Assistimos à transição da era analógica para a digital, dos computadores que ocupavam salas inteiras aos dispositivos pessoais que revolucionaram o acesso à informação.
Agora, no crepúsculo de nossas vidas, deparamo-nos com o desafio final: a Inteligência Artificial. Testemunhamos máquinas evoluírem de ferramentas passivas a entidades que aprendem, criam e decidem. Essa revolução nos enche em igual medida de assombro e apreensão, levando-nos a questionar o que significa ser humano nesta nova era.
A pandemia de COVID-19 representou nosso último grande desafio coletivo. Para uma geração que sobreviveu à poliomielite e varíola, o “paralisamento” global foi um sinal aterrador. Mas testemunhamos o milagre científico moderno: vacinas desenvolvidas em tempo recorde, com a mesma tecnologia digital que nos permitiu manter laços amistosos através de redes sociais durante o isolamento.
Ficção? O robô Hal de Uma Odisseia no Espaço era um acrônimo de IBM
Contudo, enquanto observávamos estas transformações tecnológicas, uma mudança mais profunda ocorria na estrutura social: a inversão da pirâmide demográfica. Na nossa juventude, a sociedade assemelhava-se a uma pirâmide robusta – muitos jovens sustentando poucos idosos. Hoje, assistimos ao pesadelo geométrico de uma base estreita que sustenta com dificuldade um topo cada vez mais alargado.
Esta inversão demográfica representa uma bomba-relógio social: o sistema de pensões, concebido quando poucos chegavam à reforma, sofre pressão insustentável; os custos com saúde disparam; a solidão transforma-se em epidemia silenciosa; testemunhamos o esvaziamento de comunidades e o encerramento de escolas. Somos simultaneamente beneficiários e vítimas deste fenômeno – usufruímos de vida mais longa, mas pertencemos a um grupo que a sociedade batalha para integrar e cuidar com dignidade.
Nosso “adeus” é assim mais que uma despedida pessoal: é o reconhecimento do fim de um contrato social. O futuro que avistamos é incerto e arriscado. A inteligência artificial, que promete eficiência, ameaça deslocar milhões de empregos, exacerbando o desequilíbrio demográfico. As mudanças climáticas que vimos germinar trarão migrações em massa e escassez de recursos, pressionando estruturas já frágeis.
A questão crucial que enfrentamos é: quem cuidará de nós? E depois de nós, quem cuidará de todos? A família tradicional, outrora rede de segurança fundamental, está dispersa e sobrecarregada. Os estados veem-se assoberbados com dívidas e prioridades concorrentes. O risco de fratura social – onde os idosos se tornem peso insuportável – é real e alarmante. E os amigos… Os amigos cada vez mais sem tempo, sem lugares e energia.
Como as gerações futuras vão conviver com a Inteligência Artificial?
Carregamos, portanto, um paradoxo único: somos a geração que testemunhou mais maravilhas tecnológicas, vivendo com intensidade e variedade que nossos avós nem sonhariam possível. Mas somos também a geração que vê o ocaso de uma certa organização do mundo. Partimos com a melancolia de quem leva memórias de um planeta mais lento, mais quieto e, de certa forma, mais humano.
Nosso adeus é assim tanto aviso como apelo: testemunho do que a criatividade humana pode alcançar quando posta ao serviço do progresso, mas também lembrete solene de que o avanço tecnológico, desacompanhado de progresso ético e solidário, pode criar abismos intransponíveis. Chegamos aos 80 anos não apenas para descansar, mas para passar o bastão da memória coletiva. Cabe agora às gerações mais jovens, armadas com ferramentas que nós apenas imaginávamos, evitar que nosso último adeus seja também o adeus à coesão, compaixão e cuidado que definem uma civilização. Nossa partida é inevitável. O mundo que deixamos para trás, esse, não tem de sê-lo do progresso material.
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