A visão brasileira dos Estados Unidos, muitas vezes moldada por filmes e música, costuma oscilar entre fascínio alienado e crítica ácida, reduzindo um país de complexidades a clichês apressados. Essa simplificação ambígua gerou dúvidas: enquanto se admirava a grandiosidade de Nova York ou a magia de Orlando, condenava-se o “imperialismo”. Poucos exploravam o “interior profundo”, onde, para minha surpresa, descobri um outro país. Tive o privilégio, como historiador, de visitar mais da metade dos estados em suas universidades, o que me proporcionou uma perspectiva verdadeiramente transformadora, capaz de desconstruir estereótipos tão arraigados.
Dessas experiências, o Tennessee, coração do Deep South, destacou-se vivamente. O termo “redneck” – algo como “caipira” – sugere uma realidade cultural distante dos grandes centros. Memphis, em particular, tornou-se um emblema poderoso do que aprendi, desafiando de forma singular minhas imagens preconcebidas e revelando uma riqueza cultural inesperada.
A alma visceral de Memphis pulsa na Beale Street
Em Memphis, a história e a cultura se entrelaçam em camadas profundas, revelando tanto a dor quanto o triunfo de uma nação. A cidade é, inegavelmente, a casa de Elvis Presley. Graceland, seu santuário, preserva a vida do Rei com uma devoção quase religiosa. Percorrer suas salas, ver os trajes cintilantes, os carros extravagantes e os aposentos íntimos, é sentir o peso de um ícone global que transcendeu fronteiras e definiu uma era. Ao mesmo tempo, a cidade carrega a memória dolorosa da luta pelos direitos civis. Foi ali que Martin Luther King Jr. foi assassinado, e o National Civil Rights Museum, instalado no próprio Lorraine Motel, transforma esse local trágico numa jornada visceral e imperdível. Com exposições sensíveis que exigem tempo para absorver, o museu não é apenas um memorial, mas um confronto direto com a brutalidade do racismo e uma celebração da coragem indomável daqueles que o enfrentaram. É impossível sair ileso, carregando um peso na alma e um profundo respeito pela resiliência humana.
Com cerca de um milhão de habitantes, Memphis guarda surpresas que desmentem sua fama de rival da country music, disputada com Nashville. A cena artística da cidade, por exemplo, é surpreendentemente sofisticada. O Dixon Gallery and Gardens é um recanto inesperado; sem aviso prévio, deparei-me com uma refinada coleção impressionista, com obras de Matisse, Renoir, Fantin-Latour, Chagall e tantos outros. Os jardins meticulosos que envolvem o local criam um oásis de beleza serena, testemunhando uma cultura florescente longe das costas glamourosas. Outro tesouro é o Memphis Brooks Museum of Art, ainda em Overton Park, que surpreende com instalações contemporâneas, como “Away with the Tides”, de Calida Rawles, onde corpos negros mergulhados em água simbolizam cura e reflexão histórica. A originalidade cultural se estende ao Metal Museum, único no país dedicado à metalurgia artística. Instalado às margens do Mississippi, ocupa um antigo hospital da Guerra Civil, adaptado com forjas e oficinas ativas. Suas demonstrações fascinam, mostrando artistas transformando ferro bruto em esculturas delicadas, enquanto o jardim de esculturas oferece uma vista deslumbrante para o rio, unindo arte e paisagem de forma singular.
No entanto, a alma visceral de Memphis pulsa na Beale Street. Ao anoitecer, a rua histórica se transfigura. O ar satura-se com o aroma de churrasco defumado – costelas que se desfazem no osso, banhadas no molho doce-picante que é uma religião local. Então, emergem os sons. Das portas abertas dos clubs jorram os blues, gênero nascido da dor e da esperança do próximo Delta do Mississippi. É música visceral, carregada de história, que fala direto ao coração. Entrar no B.B. King’s Blues Club ou no Rum Boogie Café é mergulhar num ritual quase sagrado. As vozes roucas dos cantores, o lamento da guitarra, o ritmo pulsante, e a plateia balançando em uníssono, criam uma energia contagiosa, uma celebração da sobrevivência e da alegria encontrada mesmo nas sombras. Ali perto, o Memphis Rock ‘n’ Soul Museum, na esquina da Beale com a B.B. King Avenue, contextualiza essa herança musical com mais de mil músicas e histórias de superação socioeconômica, ligando a música à profunda jornada social da região.
Memphis encapsulava a complexidade que eu buscava entender. Ela abrigava o brilho dourado de Graceland e a sombra trágica do Lorraine Motel. Celebrava reis do rock no Sun Studio, onde Elvis gravou seu primeiro disco, e a alma negra no Stax Museum, enquanto confrontava um passado racial brutal no Slave Haven Underground Museum. Ostentava uma sublime arte europeia ao lado da autenticidade crua dos juke joints da Beale Street. Era “redneck” e sofisticada, como provam as forjas do Metal Museum; sofrida e resiliente, profundamente americana em suas contradições irreconciliáveis e na sua capacidade de seguir em frente.
O verdadeiro “sonho americano”, compreendi naquela noite às margens do poderoso Mississippi, sob o céu estrelado do Tennessee, não é um conto de fadas uniforme ou uma hegemonia monolítica. É um bordado complexo e muitas vezes doloroso, fiado com fios de triunfo e tragédia, inovação e tradição, opressão e libertação. Memphis, com seus blues que falam da alma, seu rio que carrega histórias, e seus museus que transformam ferrugem em arte ou dor em consciência, mostrou que a grandeza dos EUA reside nessa capacidade de conter mundos tão diversos e conflitantes, numa busca constante, imperfeita, mas visceralmente humana, por significado e redenção.
O desafio, para qualquer observador, é abraçar essa complexidade sem simplificá-la, ouvindo o martelar nas oficinas do Metal Museum, o lamento da guitarra na Beale Street e o murmúrio do rio, que contam histórias muito mais profundas do que qualquer clichê costeiro jamais poderia imaginar. É nesse profundo Sul, onde a história lateja nas paredes e a música cura feridas antigas, que se encontra o coração pulsante – e gloriosamente contraditório – da América. Sobretudo, aprendendo-se olhar melhor, adivinha-se que os Estados Unidos é algo mais do que a política de Washington e sobretudo de Trump.
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