Catedral da Sé, em São Paulo, lotada em homenagem a Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura em 1975

               Céu azul e ensolarado de um sábado como o sábado que passou. Minha família estava feliz, alegre e o sorriso era a marca registrada. Acabara de nascer meu filho Pedro Paulo, nome escolhido por sua mãe Consuelo de Castro, teatróloga, que bordara em tecido: “Pedro Paulo cuidado com a bicicleta, não vai atropelar o sorveteiro. Pedro Paulo, cuidado com o medo”. Se fosse uma filha se chamaria Aurora, amanhecer, companheira que morreu sob cruel tortura – coroa de cristo de ferro que esmaga lentamente a cabeça – no DOI-CODI do Rio de Janeiro em 10 de novembro de 1972.

A alegria durou pouco. Naquele tempo ainda não havia telefone celular. As informações dependiam de contatos pessoais ou de telefones fixos. O isolamento na maternidade onde Pedro Paulo acabara de nascer foi quebrado na manhã seguinte com a chegada da primeira visita que trouxe a notícia sobre o jornalista Vladimir Herzog havia “se suicidado” na sede do DOI-CODI da rua Tutoia. No mesmo lugar onde vivi na pele a violência da tortura que começou no dia 1° de outubro de 1969.

O centro de tortura funcionava na rua Marcelo Carvalhal, ao lado do 36º Distrito Policial, na esquina com a rua Tutóia. Informado pelo jornalista Paulo Markum que a polícia o procurara na redação, Vlado se apresentou espontaneamente ao DOI naquela manhã de sábado, 25 de outubro. Ninguém sabe até hoje detalhes sobre o que se passou. Ali morreu. Torturado! Assassinado!

Vladimir Herzog, jornalista respeitado, e a cena apresentada pela ditadura como suicídio

               No dia seguinte, houve uma verdadeira peregrinação de amigos. Muitos saíam da maternidade para o velório do Vlado, outros chegavam à maternidade vindo do velório. O clima era de comoção, apesar de muitos ali já terem sofrido com a morte ou o sofrimento de amigos ou parentes nas mesmas condições. Uma purgação coletiva. Uma catarse espontânea. A ditadura já nos reprimia há mais de 10 anos. A dor provocada pela ação consciente de outros seres humanos não se justifica. Nem se explica.

A criança doce que ali nasceu não tinha nada a ver com a dor coletiva que nos conduzia ao velório ou à maternidade. A mãe ainda não sabia que Vlado, que ela conhecia, havia sido assassinado. Eu apenas torcia para que Pedro tivesse “cuidado com o medo”.

Meio século depois, exatamente no sábado 25 de outubro, na catedral da Sé completamente lotada por pessoas que em geral conheceram apenas o que história registrou, empunhando um cartaz cobrando o direito de saber onde se encontravam os corpos de seus entes queridos considerados desaparecido, ou apenas uma singela rosa branca.

Maria Elizabeth Rocha. ministra e presidente do Superior Tribunal Militar

               O Brasil mudou. A cerimônia de sábado parece confirmar. Naquele mesmo evento, a presidente do Superior Tribunal Militar, Maria Elizabeth Rocha, pediu perdão aos mortos, desaparecidos e torturados do regime militar, estendendo o gesto aos familiares. E começou falando: “Senhoras e senhores, estou presente neste ato ecumênico de 2025 para, na qualidade de presidente da Justiça Militar da União, pedir perdão a todos que tombaram e sofreram lutando pela liberdade. Pedir perdão pelos erros e as omissões judiciais cometidas durante a ditadura”.

Parece que o Brasil mudou. Tomara.