Caros natalinos,
Escrevo esta carta em absoluto sigilo, como bilhete clandestino, legítima desforra contra a avalanche anual de pedidos repetidos. Estamos no dia 21 de dezembro, e a máquina do Natal já começou a ranger: abastece o trenó velho, apluma o visual, exige o look adequado, sorriso profissional, barba alinhada e afeto em escala industrial. Eu, Papai Noel, funcionário simbólico do imaginário global, visto o vermelho regulamentar, ensaio o sorriso padrão tipo Rede Globo e escondo no bolso um desejo indecoroso: que isso tudo acabe logo.
Não, não sonho com descanso no Polo Norte, esse lar doce lar congelado. Meu delírio é outro, bem mais solar. Quero sumir do mapa, apagar-me do imaginário consumista, mas, note bem, desaparecer no sentido carioca da coisa. Trocar neve por areia, casaco por bermuda, trenó por chinelo. Fugir para o Rio, onde o calor dissolve mitos e a barba branca cresce pedindo confete e serpentina.
Imagino-me desembarcando no dia 26, discretíssimo, apesar da inevitável ressaca ética pós-Natal e de uma bermuda branca ofensiva ao padrão invernal. Caminho pela orla como um ex-servidor público gastando sem culpa o décimo terceiro, alguém que finalmente descobriu o direito sagrado de não representar nada. Quero passar o Réveillon sem criança puxando barba, sem selfie, sem pedido de presente parcelado em dez vezes. Quero fincar os pés na areia quente e experimentar, pela primeira vez em séculos, a sensação revolucionária de que meu corpo não pertence ao comércio afetivo.
Depois dos fogos e das caipirinhas, o plano é simples: esticar “só mais uns diazinhos” que, como todo mundo sabe, no Rio viram semanas, pelo menos até fevereiro. Acordar tarde, beber água de coco, frequentar ensaio de escola de samba, um Fla-Fluzinho estratégico, suar como quem derrete obrigações milenares. Minha pança, antes ridicularizada pelo marketing natalino, ganha ali status de patrimônio cultural. Nada de saco de presentes: apenas eu mesmo, agora oficialmente Rei Momo em estágio probatório.
Claro que vou beber umas e outras. Claro que vou achar que sei sambar. Claro que vou me apaixonar por alguma bateria e cometer erros diplomáticos graves, além de um ou outro deslize politicamente incorreto. Se as renas vierem me buscar, faço até pose de malandro, sendo puxado pelo calcanhar no meio do bloco, como quem resgata o tio desaparecido desde sexta-feira. Volto ao gelo, ao dever, ao espírito natalino reciclado. Mas isso é depois.
Hoje, 21 de dezembro, antes do primeiro sino, escrevo apenas para registrar meu desejo mais subversivo: quando o Natal acabar, quero viver. Viver suado, barulhento, tropical e um pouco indecente. Viver no intervalo entre o mito e a fantasia, entre o trenó e o surdo da bateria.
Feliz Natal… quer dizer… bom Carnaval. Ou será “melhor CarNatal.


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