O mandamento é claro, de raiz milenar: “Não matarás”. A Constituição brasileira, por sua vez, declara com objetividade que “o direito à vida é inviolável”. No entanto, entre o texto e a prática abre-se um abismo ético. As recentes megaoperações policiais no Rio de Janeiro, com dezenas e até centenas de mortos, expõem a falência simultânea desses dois pilares: o religioso e o jurídico. O que deveria ser uma garantia universal transformou-se em privilégio de poucos. A perplexidade cresce diante do fato de que boa parte da população, entre 60% e 70% dos fluminenses, segundo pesquisas recentes, apoia abertamente tais ações. Essa aceitação de massacres praticados pelo Estado revela um inquietante colapso moral coletivo.

Não se trata de casos isolados. Em maio de 2021, a chacina do Jacarezinho vitimou 28 pessoas, tornando-se a mais letal da história até então. Quatro anos depois, agora, em outubro de 2025, a megaoperação nos Complexos da Penha e do Alemão superou o recorde, com 121 mortes entre civis e policiais. Esses episódios configuram uma espécie de “pena de morte extrajudicial”, aplicada sem julgamento, sem defesa e sem distinção clara entre criminosos e inocentes. A Constituição, que proíbe a pena capital em tempos de paz, é rasgada em nome de uma suposta “guerra ao crime”. E a sociedade, anestesiada pelo medo e pela indiferença, parece ter se acostumado à barbárie.

O discurso oficial repete-se: trata-se de combater o topo das facções criminosas, de “cortar a cabeça do monstro”. Mas a realidade desmente a retórica. Os líderes do Comando Vermelho, do Terceiro Comando e de outras facções seguem operando dentro e fora dos presídios, protegidos por redes de corrupção e pelo distanciamento geográfico do front. As vítimas, em sua maioria esmagadora, são jovens negros e pobres das favelas, suspeitos, pequenos traficantes ou simplesmente moradores pegos no fogo cruzado. O Estado, sob o pretexto de restaurar a ordem, pratica uma política de extermínio seletivo que tem como alvo as bases sociais mais vulneráveis. O resultado é duplo: o custo humano é altíssimo e a eficácia, mínima.

Comando Vermelho se expande na região Norte

A contradição moral do apoio popular é profunda. Muitos cidadãos não celebram o sangue, mas o que julgam ser a eficiência da força. Aplaudem o “resultado”, como se a morte fosse um meio legítimo de restabelecer a segurança. Trata-se, em última instância, de um grito de desespero: a sociedade descrente da Justiça busca atalhos punitivos, entregando às armas o que o sistema judicial não entrega. Mas é aí que o dilema se agrava: o mesmo “cidadão de bem” que exige a inviolabilidade de sua vida apoia a supressão sumária da vida alheia, desde que essa vida pertença a quem já foi rotulado como inimigo, delinquente ou descartável.

A seletividade do “não matarás” tem cor, endereço e classe social. A morte de um jovem negro da periferia raramente comove, enquanto a de um turista, um policial ou um morador de bairro nobre mobiliza a indignação nacional. A vida, portanto, passou a ter preço, e esse preço é definido por critérios de raça e renda. A velha autoimagem de um Brasil cordial e sem preconceitos revela-se uma farsa conveniente: serve apenas para esconder o racismo crônico e a desigualdade histórica que sustentam a violência de Estado.

É preciso reconhecer que existe um “jeito brasileiro” de resolver problemas, e ele muitas vezes passa pela eliminação física ou simbólica do outro. Negamos ao pobre o direito à educação, ao trabalho e à moradia digna; quando ele se torna um problema visível, negamos-lhe também o direito à vida. Esse é o verdadeiro abismo moral do país, não o da criminalidade, mas o da complacência diante dela, quando o criminoso é o próprio Estado.

Corpos recolhidos pela população dos complexos do Alemão e Penha

A falência ética se completa na indiferença. A morte se torna estatística, a notícia vira rotina, e a sociedade se acostuma a ver corpos estendidos no asfalto sem sentir horror. Essa anestesia moral é o maior triunfo da violência. Enquanto o “não matarás” continuar sendo aplicado de modo seletivo, a civilização brasileira permanecerá incompleta, marcada por uma espiritualidade mutilada e por uma democracia de fachada.

A reconstrução desse país não exige apenas reformas institucionais, mas uma profunda conversão moral. É urgente desarmar, antes de tudo, a mão que aplaude o assassinato e o coração que o justifica. O Estado deve ser forte, sim, mas forte na lei, não na bala. Só haverá redenção quando o mesmo rigor for aplicado a todos: aos criminosos comuns e aos agentes do Estado que transformam a Constituição em um detalhe descartável. Honrar o mandamento “não matarás” significa, hoje, lutar para que o direito à vida deixe de ser uma promessa constitucional e se torne uma realidade universal.