Esse conto em “A Velhinha de Taubaté” diz tudo e mais alguma coisa. Exagero? Leiam e confiram como é possível fazer história com humor. Estamos no mês do amarelo. Campanha para enfrentar o suicídio que assola cada vez mais o mundo ocidental, em especial o império que um louco insiste em ser coroado como primeiro imperador. Em Taubaté dos velhos tempos havia muito jacaré em baixo da cama.  Muitos amigos pagaram caro. Deixa pra lá. Vamos lá. Uma pequena homenagem aos que partiram

*****

Uma cama larga, simbolizando o país. Sobre a cama, não me pergunte como, um reacionário, simbolizando as classes dominantes, sua mulher frívola e infiel, simbolizando a inconsciência nacional, e um doido, simbolizando um doido. Fala o doido:
– Esse ruído…
– Que ruído? – pergunta o reacionário.
– Debaixo da cama.
– Não ouvi ruído nenhum.
– Exatamente. Não é estranho? O jacaré está quieto.
– Que jacaré?
– O jacaré embaixo da cama.
A mulher frívola e infiel dá um grito abafado. O reacionário diz:
– Não há jacaré nenhum embaixo da cama.

O doido faz uma cara triunfante e pergunta:
– Se não há um jacaré embaixo da cama, então o que é que está em silêncio?
A lógica do argumento é inatacável. E, a julgar pelo tamanho do silêncio, o jacaré é enorme.
– Por que será que ele está quieto? – pergunta o reacionário.
– Não sei – diz o doido. – A não ser que ele tenha comido alguém…
A mulher frívola e infiel leva as mãos à boca mas deixa escapar um nome:
– Danilo!
– O quê? – dizem o reacionário e o doido juntos.
– Nada, nada…
Mas ela desaparece sob o lençol para chorar seu amante. Danilo, comido por um jacaré embaixo da cama! E com o pijama novo que ela lhe deu.
– O jacaré deve ter comido o comunista – diz o reacionário.
– Que comunista?
– Tem sempre um comunista debaixo da cama.
– Depois eu é que sou doido…Não tem comunista nenhum debaixo da cama.
– Se o jacaré comeu, não tem mesmo.
– Só há uma maneira de sabermos o que realmente aconteceu – diz o doido, sensatamente. Olharmos debaixo da cama.
Os dois espiam embaixo da cama e vêem um moço de pijama novo, que sorri sem jeito.


O reacionário endireita-se na cama e começa a refletir. Olha para o doido, depois olha para sua mulher que chora. Aos poucos, vai se dando conta da situação.
– Meu Deus! – exclama.
– O quê? – diz o doido, pensando que é com ele.
– O comunista comeu o jacaré.

DEBAIXO DA CAMA, de Luiz Fernando Veríssimo, em ‘A Velhinha de Taubaté – Novas Histórias do Analista de Bagé’ (1983)