O Noé que habita cada um de nós é como lembrança viva de que precisamos erguer nossas próprias arcas de esperança e cuidado, pois é da preservação, e não da conquista, que depende a nossa vida e a de quem nos seguir
Não é coincidência. Existe uma linha invisível que liga tudo. Explico: eu estava em leituras sobre a natureza dos heróis na história e, em seguida, na televisão me deparei com um programa sobre personagens produzidos para a sociedade de massa. Eu tinha acabado de revisitar os argumentos de Joseph Campbell e Sidney Hook e, por isso, a jornada dos super-heróis me pareceu atualização de mitos.
Segundo Campbell, em O Poder do Mito, os heróis são arquétipos universais, modelos psicológicos que nos guiam em nossa travessia pela vida. Ao mesmo tempo, O Herói na História, de Sidney Hook, alertava para a complexidade do papel do herói, contestando a visão de Thomas Carlyle de que a história é feita apenas por grandes indivíduos. Hook me fez ver a distinção crucial entre o herói que cria o seu tempo e o que é apenas produto dele. Com essas ideias, o que vi na tela excitou minha percepção.
Mitos seriam modelos psicológicos que nos guiam em nossa travessia pela vida
A capa vermelha do Super-Homem e o escudo do Capitão América revelavam a solidão dessas figuras que, apesar de salvadores, não tinham laços familiares, mostrando-se unidimensionais. Foi natural, então, desviar o olhar para personagens que habitavam a pele: o marinheiro Popeye que encontra força no espinafre, o detetive Poirot que enxerga a verdade escondida, ou Tarzan que governa a selva sem coroa. A grandeza deles não estava no poder sobre-humano, mas na astúcia e na coragem, que, por serem menos espetaculares, tornavam-se mais próximos. E nesse mesmo universo das páginas ilustradas surgiam outros exemplos: o Batman, cuja força não é mágica, mas fruto da disciplina e da dor; a Mulher-Maravilha, que carrega em si o sopro de antigas deusas guerreiras; o Homem-Aranha, que equilibra o peso da responsabilidade com a fragilidade de um adolescente comum. Cada um deles, à sua maneira, reatualiza velhos mitos, devolvendo ao presente ecos de narrativas ancestrais.
Essa busca por densidade levou-me à mitologia. Naveguei pelos mares gregos, onde o heroísmo era um fardo divino. Detive-me em Prometeu, a chama roubada que acende a civilização e paga o preço eterno; em Hércules, cuja força brutal era também penitência; em Ulisses, o incansável buscador de sua Ítaca. Eram heróis que lutavam contra monstros e contra o próprio destino, mas que, ao fim, pareciam sempre aprisionados no ciclo da tragédia.
Não satisfeito, voltei-me para as narrativas bíblicas, onde o heroísmo não era qualidade inata, mas chamado. Pensei em Sansão, cuja força se desfazia num instante; em Abraão, cuja bravura era a obediência cega a uma voz invisível; em Moisés, o líder hesitante que carregou não a espada, mas um cajado, e libertou um povo pela obstinação da fé. O heroísmo deles não vinha da glória pessoal, mas de um propósito maior, uma missão inescapável.
Mulher-Maravilha carrega em si o sopro de antigas deusas guerreiras
Foi apenas quando encontrei Noé que me aquietei. Noé não é um herói de combate. Não possui a força de Sansão, a astúcia de um detetive ou o poder de um titã. Seu feito não está em destruir, mas em guardar. Ele não luta contra inimigos de carne e osso, mas contra a dissolução de um mundo inteiro. Noé acreditou no que parecia delírio e trabalhou anos sob o escárnio. Sua Arca não era arma, mas abrigo; não era navio de conquista, mas cofre de vida.
Assim, a reflexão sobre Noé se projeta como espelho de nosso tempo. Em uma era atravessada por guerras, desmandos e colapsos, em que os heróis tradicionais parecem distantes e inadequados, Noé ressurge como figura possível: não o guerreiro da vitória, mas o guardião da sobrevivência.
A força brutal de Hércules era também penitência
Campbell ensinou que a jornada do herói é explicação simbólica. A de Noé não é de batalha, mas de preservação. Hook lembraria que o herói se reinventa segundo seu tempo, e hoje talvez Noé seja o único capaz de nos interpelar. Noé torna-se, assim, emblema de uma humanidade à procura de porto seguro. Sua Arca é metáfora da responsabilidade que nos cabe: salvar o que é essencial em meio às tempestades. Num tempo em que o conflito e a divisão são celebrados, sua história é um chamado à construção, à união, à fé na continuidade.
Diante de um mundo que se arma para o Dilúvio da pós-modernidade, vislumbro a necessidade de despertar o Noé que habita cada um. Não como personagem remoto, mas como lembrança viva de que precisamos erguer nossas próprias arcas – não de madeira e betume, mas de esperança e cuidado. Pois é da preservação, e não da conquista, que depende a vida… A nossa vida e a de quem nos seguir.
No Comment