Mestre Sebe e Silvio Tendler sob a bandeira que representa a utopia que reune muitos amigos
Recordo-me com um misto de saudade e dor de uma conversa que tive com meu amigo recém-falecido, o cineasta Silvio Tendler. Era uma tarde quente. Após algum trabalho em comum, deixamos o papo fluir, leve como o sol que fugia no horizonte. Naturalmente, falamos sobre amizade. Entre emocionado e contente, Silvio resumiu sua filosofia com uma frase poderosa: “O maior elogio que recebi foi de alguém que disse ser eu o melhor amigo de muitos amigos.”
Essa conversa, arquivada no melhor de minhas memórias, ecoou outras vozes que cantaram esse vínculo. A sabedoria de Renato Teixeira, outro amigo, pontifica “a amizade é um santo remédio, um abrigo seguro”. Aliás, diversas músicas brasileiras celebram esse sentimento: “Amigo” (Roberto Carlos), “Velha Infância” (Tribalistas) e “Quem Tem um Amigo, tem tudo” (Emicida)… E são tantas…
No entanto, nenhuma voz ressoou com tanta força quanto a de Vinicius de Moraes, o poeta que mais e melhor desvendou essa relação. O “Soneto do Amigo”, por exemplo, se inicia com a ternura do reencontro: “Eis-me aqui, de retorno, o velho amigo, Depois de tanto erro passado, Tantas retaliações, tanto perigo, Eis-me de volta, ileso e renovado.”
Um encontro inesperado com o poetinha em Itapuã, em Salvador BA, onde Vinicius residiu
Poucas vezes a poesia alcançou tamanha delicadeza. Vinicius não abre o coração para um amor romântico, mas para um sentimento ainda mais profundo: o laço fraterno que sobrevive aos desencontros, ao tempo e à própria vida. O amigo, em seu lirismo, não é um anjo de bondade, mas “um bicho igual a mim, simples e humano”. Alguém que entende, perdoa e até “disfarça com o meu próprio engano”. A grandeza está na transparência: o amigo é um espelho, um reflexo que multiplica a alma, revelando o que há de melhor e de pior em nós, e mesmo assim permanece.
Vinicius escreveu sobre o amor com paixão incomparável, mas quando tratou da amizade, deixou entrever uma fé que ultrapassa o lirismo fugaz: “Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!” Essa confissão, tantas vezes repetida, não é exagero; é revelação. O amor nasce e morre no fogo das paixões; a amizade, ao contrário, é rocha, é o que fica.
O poeta acreditava que os amigos não se escolhem: “A gente não faz amigos, reconhece-os”, ele escreveu. É como se as almas, em um plano anterior da existência, tivessem combinado o reencontro. Encontrar um amigo, portanto, é apenas lembrar o que já se sabia. Por isso, no soneto, o amigo é “nunca perdido, sempre reencontrado”.
JC Sebe e aquele “ser que a vida não explica”, um espelho que multiplicava generosidade e paixão
A amizade, no universo viniciano, é essa permanência misteriosa. Não importa a distância, os silêncios ou os desencontros: o laço continua vivo. Há sempre o “olhar antigo” que nos acolhe como se o tempo não tivesse existido. O amigo verdadeiro é aquele que vê a nossa essência, mesmo quando a vida nos muda ou nos fere. Talvez por isso Vinicius a tenha definido de forma tão simples e definitiva: “Um ser que a vida não explica”. Não é um sentimento racional, é destino.
No fundo, o que o poeta nos ensina é que a amizade é o amor que não precisa de prova. É o abrigo da alma, o riso que permanece depois das lágrimas, o reencontro que não exige explicações. O amor pode arder e acabar; o amigo, esse não. Vinicius, o boêmio de alma generosa, entendeu como poucos que a amizade é o verdadeiro milagre da vida. Não é um episódio, é uma morada. E assim, ele nos legou a mais terna das certezas: os amores podem morrer, mas os amigos são eternos.
E é exatamente nessa certeza de eternidade que a lembrança de Silvio Tendler se torna mais luminosa. O elogio que ele recebeu, ser o melhor amigo de muitos amigos, era a prova viva de que ele encarnava a filosofia viniciana. Silvio não apenas fez amigos; ele os reconheceu e os cultivou com uma lealdade incurável. Ele foi, para tantos, aquele “ser que a vida não explica”, um espelho que multiplicava generosidade e paixão. E sempre nos fazia rir…
Sua partida foi dolorosa, mas, seguindo a lógica do poeta, sua amizade não está perdida; ela permanece reencontrada em cada obra que deixou, em cada história que contou e, principalmente, na alma de cada amigo que ele ajudou a multiplicar. O fio que Vinicius teceu sobre a permanência dos laços fraternos mantém o nosso amigo, Silvio, vivo na essência do que ele foi: um homem cujo coração era um vasto e inesquecível porto seguro.


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