A morte de Preta Gil não foi apenas a partida; foi um lamento doído que enlutou o

Brasil. Ela deixou um rastro que transcendeu o mundo artístico, tornando-se símbolo

de resistência, amor e compromisso. Num país marcado por divisões, sua ausência,

surpreendentemente, uniu vozes díspares em um raro momento de reverência

coletiva. Sua tocante despedida convida a uma reflexão sobre o que realmente

importa: viver com autenticidade, enfrentar as fragilidades sem medo de julgamento e

honrar a diversidade. Se fosse preciso isolar uma única palavra para sintetizar sua

existência, seria: coragem. Aliás, esse é o título do último capítulo de seu livro de

memória “os primeiros cinquenta”.

Preta Gil nunca foi apenas uma cantora, nem se limitou a ser empresária. Ela era um

manifesto em movimento. E com valentia escolheu forjar sua própria e singular

identidade — uma mistura explosiva de irreverência, militância apaixonada e uma

vulnerabilidade que desarmava. Enfrentou o racismo, a homofobia e a gordofobia com

uma coragem frontal que desmantelava preconceitos e abria caminhos. Sua atuação e

sua arte não eram mero entretenimento; eram um convite poderoso à transformação.

Cada música, cada aparição pública, ecoava como um grito por espaço e respeito,

defendendo as minorias e os invisíveis.

Em um mundo obcecado por imagens perfeitas e narrativas hipócritas, Preta mostrou,

com atrevimento, que a verdadeira força reside na autenticidade e na capacidade de

dinamizar valores estabelecidos. Quando revelou sua dolorosa luta contra o câncer,

não o fez em tom de vitimismo ou para buscar compaixão, mas como um ato sublime

de partilha. Revelou publicamente suas dores mais profundas, seus medos mais

íntimos desmistificando a ideia de que sofrer é uma derrota. Sua vulnerabilidade

tornou-se um farol para milhares que enfrentavam batalhas silenciosas, provando que

a humanidade — em sua forma mais crua — é o que nos conecta. Ela detalhou, sem

filtros, situações incômodas que eram a realidade de sua jornada.

No dia de sua morte, as redes sociais, usualmente palco de futilidades e ódio

desenfreado, transformaram-se em um comovente coral de homenagens e

reconhecimento. De anônimos a celebridades, todos pareciam concordar: Preta

merecia ser lembrada não apenas por seu talento, mas por suas mensagens. O luto

coletivo revelou um Brasil momentaneamente livre das divisões habituais, unido pela

perda de alguém que, mesmo sem pretender, ensinou mais sobre vida e humanidade

do que muitos discursos.

Entre as muitas cenas emocionantes, destacou-se a serenidade tocante de Gilberto

Gil. Em suas palavras — ditas com uma calma que cortava a alma e fazia sangrar a

compaixão — havia uma lição ancestral de paciência e resignação que tudo

compreende: o amor verdadeiro não aprisiona, mas liberta, solta, permite que o outro

parta em paz. Ao dizer à filha que poderia “deixar ir” se a dor fosse insuportável, Gil

mostrou que a maior prova de afeto é respeitar o limite do outro, mesmo quando isso

significa a perda mais dolorosa. Foi um ensinamento sobre dignidade, compaixão e a

aceitação da vida. Uma prova de que há beleza na dor e que o desespero é menor

que a saudade.

Se há um legado expressivo do que Preta representou para multidões, é o seu Bloco

de carnaval. Mais que uma festa, tornou-se um território sagrado de liberdade, onde

corpos diversos dançavam sem julgamento, e identidades floresciam sem medo. Ali, a

militância se fazia alegria, e a inclusão não era discurso, mas uma prática, exercício

libertário sem distinções de classes, credos ou gêneros. O Bloco era a prova de que a

transformação social pode — e deve — ser celebrada com música, dança e afeto. No

coração do Rio, capital dos sentimentos nacionais, o Bloco era o próprio país

conferindo o que há de melhor em sua alma: a capacidade de celebrar a diferença em

união.

Passados dias, a pergunta que ecoa é: como honraremos sua memória? Voltaremos

aos mesmos ódios, às polarizações vazias, às divisões mesquinhas? Ou usaremos

sua vida como inspiração para vivermos com mais verdade? Preta nos mostrou que a

morte pode ser um espelho — e em seu reflexo, enxergamos não apenas o que

perdemos, mas o que ainda podemos ser: mais humanos, mais corajosos em nossas

verdades e, acima de tudo, mais respeitosos com as diferenças que nos enriquecem.

Que sua ausência não seja apenas um risco passageiro, mas um chamado irrefutável.

Um convite para que, em meio ao caos, lembremos do que ela representou: a ousadia

de existir sem pedir licença. Não se busca uma igualdade total, mas o convívio

saudável e plenamente possível com a diferença. Essa é a trilha sonora da

democracia, a mesma democracia ensinada por Preta Gil.