Para Manuela, Lucas e (claro) para meu bisneto Romeu
Amsterdã não é apenas uma cidade; é uma tese arquitetônica flutuante, um ensaio vivo sobre a convivência humana. Desenhada por canais que serpenteiam a história em curvas provocantes, ela se apresenta ao visitante como uma imagem de postal gélido e impecável. As levas de bicicletas deslizam silenciosas sobre pontes estreitas, e a luz do outono, quando rompe a névoa úmida, reflete um dourado pálido nas fachadas estreitas e inclinadas das casas do século XVII, XVIII, XIX e dos dias de hoje. Há uma beleza estoica e geométrica neste lugar, uma serenidade que a torna inegavelmente linda: arrebatadora, diria. De certa forma, é como se entrássemos em um daqueles contos de fada.
Mas, sob o céu de chumbo e a brisa cortante do Mar do Norte, reside uma contradição vital: o frio do clima contrasta com o calor da audácia. Esta dualidade não é estética, é filosófica. Amsterdã exala uma coragem moral que desarma e inspira, expondo as fissuras nas certezas das sociedades convencionais. É aqui, nesse palco de tolerância metódica, que se encontram algumas das mais importantes e polarizadoras experiências da modernidade ocidental.
A Holanda, como nação, é notavelmente liberal, mas é Amsterdã que se torna o laboratório, o epicentro onde essa liberalidade se traduz em políticas públicas que fariam qualquer sociedade mais rígida estremecer. A cidade foi pioneira na legalização do aborto e, mais notavelmente, na profissionalização da prostituição e na política de uso controlado de drogas (embora o coffeeshop seja uma experiência especificamente holandesa, é na capital que ela adquire sua maior visibilidade global). Tais realidades, expostas sem pudor nos seus notórios distritos, causam espanto, choque ou repulsa para sociedades mais conservadoras – como a brasileira.
No entanto, ignorar essas realidades ou classificá-las como mera decadência moral (ou capital de todos os pecados) é perder a grande lição de Amsterdã. Tais escolhas não são acidentais; são frutos de uma profunda e fria reflexão racional sobre o papel do Estado, a liberdade individual e, acima de tudo, a superação da mera tolerância.
Em muitos lugares do mundo, “tolerância” significa simplesmente suportar aquilo que não se aprova, mas que se permite existir à margem. É um ato de paciência condescendente e até autoritário. Amsterdã, ao contrário, demonstra ter avançado para uma esfera superior: a do direito moderno de liberdade. Ao regularizar o trabalho sexual e o consumo de substâncias leves, a cidade não está, primariamente, tolerando o vício ou a “imoralidade”. Está, sim, reconhecendo a inevitabilidade de certos comportamentos humanos e optando por retirá-los da sombra da criminalidade e do controle de máfias, trazendo-os para a luz da legislação, da fiscalização sanitária e da tributação.
Essa abordagem pragmática revela uma maturidade política impressionante. Ela entende que a proibição raramente elimina o problema; ela apenas o empurra para as margens, onde se torna mais violento e incontrolável. Ao transformar a prostituição em profissão regulamentada, por exemplo, o Estado não a glorifica, mas confere direitos trabalhistas e proteção policial às trabalhadoras, minando a atuação de cafetões e o tráfico humano – questões infinitamente mais graves do que a moralidade do ato em si.
Em poucos dias, o visitante percebe que a audácia de Amsterdã não é um carnaval irresponsável, mas uma responsabilidade legalista. A liberdade aqui é administrada com a precisão de um relógio holandês. É essa combinação quase paradoxal de racionalidade fria e coragem social que faz dela um ponto vital de reflexão sobre a modernidade. A cidade nos obriga a perguntar: o que é mais moderno – manter um comportamento socialmente desaprovado na ilegalidade, onde prosperam a violência e a doença, ou trazê-lo para a legalidade, limitando seus danos e garantindo direitos?

AMSTERDAM, NETHERLANDS – JULY 29, 2015: A board showing the text “AMSTERDAM RED LIGHT DISTRICT” in Da Wallen, Amsterdam. It consists of a network of alleys containing approximately three hundred one-room cabins rented by prostitutes.
Amsterdã, com suas casas perfeitas e seus canais congelados pela neblina, ensina que a verdadeira liberdade não reside na ausência de regras, mas na escolha de regras que priorizam a redução de danos sobre o julgamento moral. É uma lição valiosa: a superação da tolerância, trocada pelo direito legal e pela administração da liberdade. E é por essa coragem, mais do que por sua beleza, que Amsterdã permanece como uma capital inesgotável para o pensamento contemporâneo.
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