A Prefeitura informa que dispõe de um laudo, mas não consegue explicar o registro feito por cidadãos
Escrever crônicas por ofício equivale a um ritual de prazos e impressões a serem produzidas no rito de dias marcados. Apesar disso, para mim, por mais desafiador que seja, esse é um dos momentos de maior realização. Há, contudo, certos textos que não nascem da obrigação e do compromisso, mas da urgência da alma, escritos com a volúpia da vontade e a seiva da paixão. Explico-me: ando comovido, com uma dor surda na memória, pelo corte de frondosa árvore que, por mais de cem anos, era um pilar verde na história da minha cidade. Em um repente cego de progresso modernizador, a Prefeitura resolveu pô-la abaixo. Há um laudo já mostrado, mas carente de contra laudo que valeria como lenitivo. Aliás, questiona-se a competência do signatário do referido documento, apagado à luz das regras da ABNT. Nesse sentido, seria tão virtuoso se o projeto de remodelação do logradouro fosse discutido com especialistas e com a comunidade.
De toda forma, não me contive vendo as fotos. Como tantos outros inconformados com proximidade de dois prédios tombados pelo CONDEPHAAT, me lancei a resmungar contra o tal atitude que se curvava em favor de uma firma em processo de instalação. Minha indignação, de tão sentida, ecoou chegando a uma amiga, que, com a sabedoria dos que guardam a história no coração, lembrou-me de um comentário de Monteiro Lobato sobre o crime de derrubar árvores centenárias.
Fui, então, a Lobato nas “Cartas escolhidas”, como quem busca consolo. E, por uma daquelas forças do destino que parecem alinhar os tempos, encontrei exatamente referências a Taubaté, a cidade dele e minha. Ouso incontido repetir a mesma revolta que ele sentiu “em Taubaté, uma velha paineira que havia no Largo do Teatro foi cortada por um prefeito da Ditadura (Vargas). O homem chegou àquela cidade com uma grande fúria faciendi. Precisava fazer algo que o elevasse no conceito do Ditador – e deitou a velha paineira que eu conheci desde menino“.
E Lobato, o missivista indignado, enumerou outras investidas contra a sanha do concreto e do asfalto, uma em São José dos Campos, outra em Piracicaba. Mas deteve-se, em comoção, no sensível caso de Caçapava, onde um funcionário, em ato de rebeldia, salvou uma dessas árvores d’antanho. A carta, escrita a Paulo Duarte em 26 de setembro de 1947 progride para reflexões sobre outras derrubadas escandalosas, como “feridas abertas em nossa terra”.
Por aquele ano, em 1947, Lobato estava na Argentina e, encantado com a cultura portenha, emendou sua reflexão em um caso de amor, onde, em contraste, identificou uma postura de “grande respeito pelas velhas árvores“. A cena que o comoveu em Buenos Aires, remetia a “um ceibo” com uma placa comemorativa, como se a árvore fosse um herói: “Flor de ceibo trazida em 1876 pela Sociedade de Fomento Don Torquato de Avenas, o primeiro intendente de Buenos Aires“. Entusiasmado, Lobato, referindo-se à placa como “a mais bela inscrição que li em minha vida” pois saudava Sarmiento, o grande mestre e Presidente argentino. A frase, retirada do poema Oração da árvore, de autoria desconhecida, referia-se a eventuais ameaçadores: “tu que passas e levantas contra mim teus braços, antes de fazer-me mal, olha-me bem“.
Figueira sendo abatida na frente do Fóruma Criminal na praça do Bosque
Sarmiento que advogava em favor da escola pública, havia ensinado o seu povo a não tratar as árvores com a brutalidade com que nós, um país que nunca teve um Sarmiento com tal eloquência, as tratamos. E dói, de certa forma, ver como Lobato termina a carta, num desabafo de quem não encontra resposta: “ninguém sabe. Ninguém consegue descobrir a razão de certos crimes cometidos neste país. Muita meningite em criança? Tara racial? Não sei…”. E, de maneira profética, ele nos conclama ao fim dessa danada “dendroclastia que parasita nossa cultura”.
A dendroclastia, lembremos, não é apenas o ato de cortar árvores, é um crime contra a memória, uma tara pela destruição do que é velho, do que tem raízes e história. O dendroclasta, Lobato insiste, é aquele que, por indiferença ou ignorância, ou por um pragmatismo estúpido, é incapaz de ver a vida que pulsa na seiva, o tempo que se franze nas rugas da casca. A dendroclastia é a manifestação de um espírito que arranca as páginas do livro que somos, um crime contra a identidade que se constrói lentamente.
Ah, que as palavras de Lobato ressoem como o eco permanente do tronco derrubado. Que elas nos lembrem que a violência contra a árvore que se ergue sobre nossas praças é a mesma violência que se pratica contra a história, contra o legado, contra a beleza da vida que floresce para além da utilidade. A dendroclastia é um mal que nos parasita. Que sejamos nós, daqui em diante, a força que se rebela e salva as árvores que nos salvam: MORTE AOS DENDROCLASTAS QUE NOS HABITAM!
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E se é legítimo o laudo condenatório, depois de comprovado por órgãos competentes, que se exercitem as leis das compensações segundo a Resolução CONAMA nº 369/2006 incluída no Código Florestal de 2012. E que bom seria se a Prefeitura liderasse o replantio compensatório. E como seria simpático se o Prefeito levasse a sério a assinatura do TERMO DE COMPOROMISSO DE RECUPERAÇÃO AMBIENTAL (TCREA). Estou certo que sua excelência o Prefeito Municipal redimiria Lobato na saudação a Sarmiento.