Odete Roitman parece destilar veneno com a elegância de uma taça de cristal. Qual seu segredo? Por que essa mulher, tão elitista, tão cheia de desprezo pelo “jeito” brasileiro, tão esnobe e implacável, nos prende à tela?

Há quem diga, com ares de filósofos de botequim, que não há nada de novo sob o sol. Pois é, talvez esses estejam mais perto da verdade do que imaginamos. Tudo se transforma, sim, os cenários, as roupas, os sotaques. Mas a essência, ah, essa parece ter um apego invencível aos seus antigos moldes. O mimetismo, dizem os mais sabidos, é um jeito elegante de padronizar tipos e situações que, embora mudem de um lugar para outro, de uma era para a outra, guardam no cerne a mesma semente. E isso vem de longe, por exemplo, ocupa um lugar singular na teoria literária, com pensadores como Georges Polti, que em 1895, em seu “As 36 Situações Dramáticas”, já cravava: há apenas 36 enredos possíveis em toda a vastidão da experiência humana. Joseph Campbell, com sua “Jornada do Herói”, e o próprio Carl Jung, com seus arquétipos dançando no inconsciente coletivo, corroboram a tese: nós, humanos, estamos condenados a repetir as mesmas histórias, os mesmos dramas, as mesmas paixões.

Para Polti, há apenas 36 enredos possíveis em toda a vastidão da experiência humana

Essas reflexões, meio devaneio, meio incômodo, vieram me assaltar a mente ao analisar um fenômeno que insiste em se repetir, fascinante e perturbador: o magnetismo que certas figuras do mal exercem sobre a audiência. E não falo de demônios alados ou monstros de contos de fadas, não. Refiro a um mal mais mundano, mais palpável, que tem nome e sobrenome, e que, curiosamente, nos cativa.

Peguemos, por exemplo, a catalizadora Odete Roitman. Ah, Odete! Aquela que, a cada cena, parece destilar veneno com a elegância de uma taça de cristal. Qual seu segredo? Por que essa mulher, tão elitista, tão cheia de desprezo pelo “jeito” brasileiro, tão esnobe e implacável, nos prende à tela? A sanha de suas maldades, suas hipocrisias finas, os danos que ela causa aos outros não são sanguinários no sentido literal. Ela não empunha facas, não atira. Sua arma é a palavra afiada, o desprezo no olhar, a manipulação calculista. A maldade de Odete é, acima de tudo, classista. Um nojo da imperfeição alheia, uma certeza pétrea da sua própria superioridade social e intelectual. Ela é a encarnação de um Brasil que muitos temem, mas que existe, e que se reflete em sua crueldade fria e seu desdém pelos “inferiores”.

E essa constatação, a de que Odete Roitman ainda ecoa em nosso imaginário, nos leva a supor outras “heroínas”, mães e matriarcas que, na matriz da literatura brasileira, também se destacam por exercerem um fascínio perverso. As linguagens são, é lógico, diferentes – a literatura e a televisão – e os tempos das tramas são outros. Mas a essência, aquela que Georges Polti e Jung tanto estudaram, essa permanece. Aquele fascínio pela crueldade, pelo esnobismo, pelo desprezo.

Dona Glória encarna a hipocrisia, o preconceito e a futilidade da elite carioca do século XIX

Na vastidão da nossa literatura, há figuras que compartilham desse DNA, mas uma chama mais a atenção. Pensemos em Dona Glória, de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Ela não é uma vilã de folhetim, dessas que esfaqueiam amantes na calada da noite. Não. Sua maldade é mais sutil, mais machadiana. Dona Glória encarna a hipocrisia, o preconceito e a futilidade da elite carioca do século XIX. Ela é a matriarca que despreza Brás Cubas por sua falta de ambição material e que valoriza a aparência e as convenções sociais acima de tudo. Sua crueldade se manifesta na forma como ela manipula os relacionamentos de sua filha, Virgília, para garantir um bom casamento, sem considerar os sentimentos que eram, para ela, meros caprichos. Há nela um refinado desdém por tudo que não se encaixa em seu mundo de aparências e status, um eco distante e jeitoso da arrogância de Odete Roitman pelo “jeito” brasileiro e pela classe média. Ela não mata ou tortura, mas sua frieza calculista e seu desprezo pelas emoções alheias, em nome das “boas aparências” e do prestígio social, são uma forma de crueldade que gela a alma, tal qual um olhar altivo de Odete.

Conectar essas figuras nos faz perceber como a crueldade pode ter múltiplas faces, transcendendo o derramamento de sangue para atingir as estruturas sociais e psicológicas. O fascínio por elas reside, talvez, na nossa própria confrontação com a sombra. O mal, quando bem construído, não é apenas repulsa; é um espelho perturbador de aspectos que preferiríamos não reconhecer em nós mesmos ou na sociedade que construímos. É a velha história, recontada de mil maneiras, que nos lembra que a maldade é, sim, uma das tramas mais antigas e persistentes da face da terra. E, por vezes, a mais sedutora.