Minha paixão por museus é amor antigo e nem me importo em decifrar. Entre paredes silenciosas e salas labirínticas, sinto-me abrigado. Sou um devasso das artes, volúvel e infiel na eternidade de meus amores precários, mas em cada um me entrego, vivo mil vidas. Minha longa jornada, minha via-crúcis pessoal por galerias do mundo, recentemente fez uma pausa solene em Amsterdã. Lá, no santuário máximo dedicado ao pintor irmão de Theo, caminhava como um pagador de promessas. De repente, como devaneio, a multidão sumiu, o ruído desvaneceu e eu fui parar, atraído por uma força maior, diante de Campo de Trigo com Corvos. Estacionei. O tempo desabou. O mundo exterior cessou.

Os especialistas apontam esse quadro e declaram: é um ensaio do suicídio. E metodicamente dissecam o céu pesado, os corvos como arautos da morte, caminho que se esvai num nada. Mas, para meus olhos que teimam em sentir, aquele horizonte não é uma ameaça; é um suspiro de libertação. As pinceladas não são labaredas de destruição, são a energia mais vital e transbordante que se possa imaginar. É neste ponto que a minha emoção se choca com a lógica, e sou obrigado a recuar no tempo para contemplar os Girassóis (1888), pintados em Arles, a fase mais colorida e, ironicamente, mais febril da vida de Van Gogh.

Auto retrato de Van Gogh

O ciclo dos Girassóis não retrata flores frágeis, mas explosões solares de vida, pintadas em camadas densas e impetuosas. Eles são o ponto de fusão entre a matéria terrena e a energia cósmica. O amarelo, cor que Van Gogh via como símbolo da felicidade e da luz, é usado com intensidade quase dolorosa. O que há de mais comovente nos Girassóis não é a sua beleza, mas o esforço desesperado de um homem atormentado em capturar a alegria e o calor que lhe eram sistematicamente negados pela própria mente. Cada pétala parece lutar para permanecer viva, testemunhando a busca incessante pela luz. O otimismo visual desse ciclo contrasta brutalmente com o desespero crescente de sua vida, criando uma tensão sublime: o desejo de felicidade transformado em cor pura.

Por isso, quando volto ao Campo de Trigo com Corvos, eu me recuso a ver um fim. Eu vejo a culminação dessa luta. Eu me nego a apagar toda a complexidade, toda a beleza furiosa que ele gerou. Minha alma se agarra não ao grito, mas ao silêncio que se seguiu. Van Gogh escreveu a Theo sentindo-se “calmo”. E eu escolho crer que, após uma vida de tempestades interiores, a decisão de partir não foi um ato de desespero puro, mas de uma lucidez aterradora e, de certa forma, pacífica. A luta interna havia findado. Aquela tela foi a sua última colheita – não do trigo que ondulava ao vento, mas de si mesmo.

“o desejo de felicidade transformado em cor pura”

E no epicentro desse turbilhão, o que verdadeiramente me derruba não é o fogo de Vincent, nem a agonia dos Girassóis. É o cordão umbilical de amor que o unia a Theo. Enquanto o mundo todo via um louco, Theo via um irmão. Enquanto os críticos viam rabiscos de um desequilibrado, Theo via os traços de um gênio. Suas cartas não eram meros suportes; eram um porto seguro onde o pintor podia mergulhar e ainda assim ser resgatado e amado.

Morrer nos braços de quem sempre, sempre o entendeu… isso não é uma tragédia completa. É um privilégio raríssimo. A sua última frase, “a tristeza durará para sempre”, nunca foi um lamento e sim legado. É como se Vincent nos sussurrasse, através dos séculos: “A dor é eterna, sim. Eu não posso negá-la. Mas vejam o que eu fiz com a minha. Eu a transformei em cor.”

O amor incondicional que recebeu de Theo, seu irmão caçula

Por isso, eu escolho ver Campo de Trigo com Corvos não como uma porta que se fecha, mas como um horizonte que se abre. O caminho não termina no trigo; ele se funde com o céu, convidando a uma travessia. E é aqui que a minha lógica emocional encontra sua conclusão mais íntima: a história de Van Gogh não é uma lição sobre a loucura, mas sobre o amor. O amor que ele deu ao mundo através da sua arte, e o amor incondicional que recebeu de Theo. A tristeza de Vincent talvez dure para sempre, mas a fidelidade de Theo e a coragem transfiguradora de Vincent é a prova particular de que, no fim da mais escura noite, o amor e a arte venceram.