Recebi de uma amiga pintora a foto de uma casinha branca. Diariamente, Yannick Nouilhetas brinda seus seguidores com desenhos surpreendentes — flores, retratos, animais, fragrantes urbanos. Mas uma dessas cenas me tocou profundamente: uma singela casinha branca. Imediatamente, meu instinto de historiador interiorano fez conexões que transcendem a imagem bucólica. Casinhas brancas são um estado de alma, a tradução fiel de um dos mais fortes traços da memória brasileira. E logo me veio um rosário de artistas que a fixaram em matizes de pura nostalgia, confirmando o papel da arte na construção de um imaginário que, embora em transformação, teima em não abandonar suas raízes.
No século XIX, pintores como Almeida Júnior registraram a vida rural do Brasil, realçando a simplicidade dessas bordas. Com o advento do modernismo, a casinha branca ganhou novos cenários. Na década de 1920, Tarsila do Amaral, em “O Pão de Açúcar”, a incorporou ao Rio de Janeiro, transformando-a em um símbolo da identidade nacional em trânsito. Mais tarde, em meados do século XX, Heitor dos Prazeres mostrou a casinha branca em contextos que contrastavam a simplicidade rural com a vida urbana, propondo rururbanidades.
Nas décadas de 1950 a 1970, artistas como Djanira insistiram em retratar casinhas e cenas campestres como um contraponto ao progresso desenfreado. Até hoje, artistas naïfs e regionalistas continuam a perpetuar essa imagem. Nesses quadros, a casinha branca não é mera referência, mas um ato de resistência e transposição. Aldemir Martins e Caribé, por exemplo, revisitaram o tema, mostrando sua vitalidade em contextos inusitados, por vezes mesclando elementos urbanos ou surrealistas, o que reflete o próprio dilema brasileiro.
Como um riacho que nasce na serra e flui para vales verdejantes ou floridos, a figura da casinha branca transcendeu a tela e encontrou sua voz na música popular. É como se as tintas dos quadros clamassem por melodia. Assim, essa poderosa imagem adquiriu voz no cancioneiro. Duas composições sertanejas em particular, cada uma a seu modo, capturaram esse espírito, pelas mãos de Elpídio dos Santos e Anacleto Rosa Júnior.
Elpídio dos Santos, com sua “Você Vai Gostar”, popularmente conhecida como “Casinha Branca” e lançada na década de 1970, ofereceu um convite sereno. A canção é um acalanto que nos embala em terno aconchego. Com melodia gentil, ela desliza como um murmúrio, pintando o sentimento: “Chega pra cá, meu amor, você vai gostar / Da minha vida, do meu jeito de amar”. São versos de acolhimento e paz. A popularidade da canção, tema de novelas e hino de nostalgia, mostra que essa casinha é um convite irrecusável à brasilidade caipira que é atemporal.
Paralelamente, com sensibilidade profunda, Anacleto Rosa Júnior, em parceria com o lendário Tinoco, nos presenteou com outra “Casinha Branca”. Se a versão de Elpídio é um convite para o futuro, a de Anacleto é um olhar pela janela da memória. Sua melodia, soturna e contemplativa, carrega o peso da saudade. Não é um chamado para o presente, mas um mergulho suave nas lembranças de um passado que vive no presente. A letra de Anacleto descreve a casa com lamento e evoca experiências sensoriais que a fazem transcender e se tornar um convite à conexão com as origens de nossa gente: “Minha casinha branca, que saudades que eu sinto de você / Das noites de luar, das estrelas no céu / Do riacho que corre lá no pé do morro…”.
Entre as duas canções, e em sua essência compartilhada com a pintura, o ponto em comum, e o mais tocante, é a celebração da memória. A casinha branca supera seu significado imediato para se tornar o símbolo de um modo de vida e de valores que parecem se perder na correria urbana.
A casinha branca não é só tijolo, barro e telha — é um suspiro, um lugar onde o tempo descansa para não morrer. Ela mora na tela dos pintores, na melodia dos cantadores, no peito de quem guarda um pedaço de chão na memória. É o Brasil que insiste em não se apagar, mesmo quando o asfalto avança e o concreto se eleva.
Pensar que tudo começou com um quadro postado por uma artista francesa que, sem querer, pintou não uma casa, mas um retrato da nossa história, é fascinante. A cena de Yannick Nouilhetas faz despontar o Brasil guardado em cada um de nós, um eco poético de nossa identidade mais profunda, um legado que floresce de geração em geração e que escolhe seus arautos.
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