Por: Luiz Gonzaga Pinheiro - spesspei@uol.com.br

Ser vivente

O médico me chamou como nunca faz e me pediu para passar por lá, quando fosse almoçar na cidade. Sua voz e o mistério que fez não recomendavam acreditar que me reservava a notícia de um prêmio lotérico. E não era notícia que se queira ouvir.


Agora, aqui isolado do mundo, penso como serei capaz de viver sem ela, seu estardalhaço gentil, toda vez que chego, mesmo que volte para casa cem vezes ao dia.


Acabo de vê-la no exercício de sua condição de grande dama, deixando-se lavar deliciada pela água quente, mas desconfiada de tanta gentileza. Seu olhar, pasmem as pessoas normais, transmitia medo e insegurança, como se perguntasse o que estaria fazendo ali e o porque de tantas atenções.


Bessie, na verdade Bessie Von Schmidt, a cadela que vive comigo há doze anos, tem duas de suas tetas ulceradas e já grandes, portadoras de mal pouco curável, como já ocorreu com dois de seus ancestrais, também, como ela, gente da maior respeitabilidade, como diria o ex-ministro Antônio Rogério Magri, com sua sentença: “Cachorro também é gente”, para alegria de Marina Villara, minha amiga.


“Nunca os seres humanos foram mais elogiados”, dizia e ainda afirma a boa Marina.


Passam por minha memória trechos da saga de Bessie em seu cotidiano. Foi a maior namoradeira do bairro, não deixando fome sem alimentação, deu-se de modo democrático, entregou-se a toda escala social, não discriminando seus pretendentes. Era generosa no amor e ao fazer amor.


Falo já no passado e não sei quem empurra minha mão, como se antecipasse o que só deveria escrever em mais algum tempo. Bessie não dividia apenas seu coração. Repartia sua comida com comensais que se serviam à mesa, como era pródiga em atendê-los em emergências menos alimentares. Tinha uma personalidade dadivosa, o que levava a procurá-la, quando sumia, na certeza de encontrá-la amando seu namorado do dia.


Não se pense nela como uma fêmea vulgar. Era criatura plural, mas de impecável rigor em seu comportamento de cada dia. Uma dama invejada por suas iguais ou assemelhadas. E amada por seus dessemelhantes, como eu, aqui tentando fazer seu necrológio antecipado, já prevendo muito sofrimento e me adiantando nas saudades que sentirei. Muitas saudades!



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