O
médico me chamou como nunca faz e me pediu para
passar por lá, quando fosse almoçar na
cidade. Sua voz e o mistério que fez não
recomendavam acreditar que me reservava a notícia
de um prêmio lotérico. E não era
notícia que se queira ouvir.
Agora, aqui isolado do mundo, penso como serei capaz
de viver sem ela, seu estardalhaço gentil, toda
vez que chego, mesmo que volte para casa cem vezes ao
dia.
Acabo de vê-la no exercício de sua condição
de grande dama, deixando-se lavar deliciada pela água
quente, mas desconfiada de tanta gentileza. Seu olhar,
pasmem as pessoas normais, transmitia medo e insegurança,
como se perguntasse o que estaria fazendo ali e o porque
de tantas atenções.
Bessie, na verdade Bessie Von Schmidt, a cadela que
vive comigo há doze anos, tem duas de suas tetas
ulceradas e já grandes, portadoras de mal pouco
curável, como já ocorreu com dois de seus
ancestrais, também, como ela, gente da maior
respeitabilidade, como diria o ex-ministro Antônio
Rogério Magri, com sua sentença: “Cachorro
também é gente”, para alegria de
Marina Villara, minha amiga.
“Nunca os seres humanos foram mais elogiados”,
dizia e ainda afirma a boa Marina.
Passam por minha memória trechos da saga de Bessie
em seu cotidiano. Foi a maior namoradeira do bairro,
não deixando fome sem alimentação,
deu-se de modo democrático, entregou-se a toda
escala social, não discriminando seus pretendentes.
Era generosa no amor e ao fazer amor.
Falo já no passado e não sei quem empurra
minha mão, como se antecipasse o que só
deveria escrever em mais algum tempo. Bessie não
dividia apenas seu coração. Repartia sua
comida com comensais que se serviam à mesa, como
era pródiga em atendê-los em emergências
menos alimentares. Tinha uma personalidade dadivosa,
o que levava a procurá-la, quando sumia, na certeza
de encontrá-la amando seu namorado do dia.
Não se pense nela como uma fêmea vulgar.
Era criatura plural, mas de impecável rigor em
seu comportamento de cada dia. Uma dama invejada por
suas iguais ou assemelhadas. E amada por seus dessemelhantes,
como eu, aqui tentando fazer seu necrológio antecipado,
já prevendo muito sofrimento e me adiantando
nas saudades que sentirei. Muitas saudades!
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