| Por 
              Jorge Fernandes
Retrato 
              de um descasoHá 15 anos, 5 meses e 10 dias 
              a policial militar Maria Antonieta Inácio de Oliveira, 36 
              anos, aposentada por invalidez, vive em quarto de cerca de 5 m2. 
              Ela é o reflexo do descaso das autoridades públicas 
              do país. Vítima de acidente de carro aos 21 anos, 
              no exercício da profissão de seus sonhos – Policial 
              Militar –, Maria Antonieta descarta qualquer possibilidade 
              de se entregar e luta por dignidade só com o apoio e o amor 
              de sua família.
    O mundo 
              de Maria Antonieta consiste em uma rotina de 24 horas de cuidados 
              e medicamentos.
 
 Acidente  
              A vida da policial militar Maria Antonieta Inácio de Oliveira 
              foi interrompida a partir das 12h40 do dia 4 de abril de 1991. Aquele 
              momento representou uma “ruptura drástica” para 
              uma garota de apenas 21 anos, que havia transformado um sonho de 
              criança em realidade quando tornou-se uma policial militar. 
              “Posso falar que aquela Maria Antonieta morreu. Infelizmente, 
              sobrou o resto daquela mulher. Perdi minha vida”.  Naquele dia, ela trabalhara, como em outras ocasiões, com 
              extrema dedicação à sua profissão. Faltava 
              pouco mais de 20 minutos para o horário do almoço 
              quando Maria Antonieta poderia, a exemplo de outros colegas, abandonar 
              o serviço mais cedo para aproveitar melhor a refeição. 
              Mas, perfeccionista, ela descartou a idéia e decidiu cumprir 
              sua obrigação além do limite.
 “Há 15 anos, 5 meses e 10 dias”, como ela mesma 
              se refere ao acidente que “ceifou minha vida”, Maria 
              Antonieta cuidava do fluxo do trânsito da Rua Dr. Pedro Costa 
              quando tornou-se mais uma vítima de atropelamento. Um Opala 
              preto, placa GB-5313, conduzido pelo motorista da Prefeitura de 
              Taubaté Francisco Jacinto Filho, que conduzia o então 
              juiz Carlos Roberto Petroni a um banco nas proximidades, a atropelou 
              e a arrastou por cerca de cinco metros. De imediato, Maria Antonieta 
              sofreu fratura de colo de fêmur. Mal sabia ela que daquele 
              momento em diante seria mais uma vítima do descaso de órgãos 
              públicos enquanto as seqüelas do atropelamento surgiriam 
              lentamente a cada dia.
 Ainda em choque por causa do acidente, a policial militar avistou 
              pela primeira e única vez o rosto de seu algoz. “Ele 
              [Francisco] não teve coragem nem para descer do carro. Vi 
              o rosto dele pelo espelho retrovisor do carro. Foi o juiz [Carlos 
              Roberto Petroni] quem desceu já dando ‘carteirada’”. 
              Segundo Maria Antonieta, o juiz mandou que o motorista fosse embora 
              enquanto ele se dirigiu até o Banespa, que à época, 
              localizava-se nas imediações do local do acidente.
 
 
  Maria Antonieta
 Eles, Maria Antonieta nunca mais viu. Apenas soube que Francisco 
              Jacinto Filho, que continuou trabalhando como motorista do Executivo, 
              foi sentenciado: cumprir 14 dias de detenção ou pagar 
              fiança irrisória, segundo a mãe da vítima, 
              a aposentada Geni de Almeida de Oliveira, 67 anos, no valor de R$ 
              500 aproximadamente. Sobre o juiz Carlos Roberto Petroni, a policial 
              militar foi informada que ele se aposentou como desembargador em 
              São Paulo. “Não busco sede de vingança, 
              quero somente que exista justiça”, exige Maria Antonieta.
 O orgulho de ser policial militar minguou depois do acidente por 
              causa do descaso como foi conduzido o processo pelos seus colegas 
              de farda. “Não foi feita prisão em flagrante 
              e só fui levada ao hospital mais de duas horas depois do 
              atropelamento. Só costumo lembrar que sou PM quando alguém 
              toca no assunto”, desabafa.
 Depois de lutar pelos seus direitos na Justiça com processos 
              de indenização e conquistar vitórias em todas 
              as instâncias, Maria Antonieta recebeu outro duro golpe. O 
              processo tornou-se precatório, em 1997. Segundo ela, o governo 
              alega que não efetuou o pagamento por falta de verba.
 
    Maria Antonieta e sua mãe
 
 Drama
 Não se pode afirmar que Maria Antonieta reside, propriamente, 
              em uma casa. Depois do acidente, a copa da residência de seus 
              pais foi adaptada (reduzida?) a um quarto e é nesse local 
              que ela vive há 15 anos, 5 meses e 10 dias. No espaço 
              com cerca de 5m2, adornado com lembranças pessoais, objetos 
              religiosos e livros, Maria Antonieta está cansada de “mendigar 
              dignidade”. Se não fosse pelo amor das filhas e dos 
              pais, acredita que não teria mais força para viver.
 Leitora voraz de Zibia Gasparetto, Maria Antonieta acorda diariamente 
              por volta das 6h e já recebe os cuidados da mãe e 
              da filha mais velha. Dali até a hora de dormir recebe religiosamente 
              mais 14 medicamentos (ver quadro) indispensáveis para sua 
              sobrevivência. “Quando não estou com minha família 
              ao lado, fico pensando numa maneira de gritar por socorro”. 
              Maria Antonieta, como ela mesma diz, vê a vida passar através 
              da janela que serve para perceber se é dia ou se é 
              noite.
 Da herança do acidente, a ex-PM recebe apenas um salário 
              pela aposentadoria por invalidez permanente concedida a partir de 
              1993. Entretanto, o valor, algo em torno de R$ 1.200,00, é 
              consumido na aquisição de material de higiene pessoal. 
              Sem falar das seqüelas do atropelamento que ecoam pelo seu 
              corpo como, por exemplo, TRM (trauma raqui-medular) na região 
              lombar; tumor hipofisário (hipermacroprolactinoma); hipopituitarismo; 
              insuficiência adrenal; insuficiência venosa; retirada 
              total do intestino grosso por acinesia; extirpação 
              cirúrgica de útero e ovários por aderências 
              abdominais; menopausa cirúrgica. Só muita moral, dignidade 
              e vontade de viver para suportar essa verdadeira biblioteca de problemas 
              médicos.
   Indignação  
              Recentemente, a indignação da família Oliveira 
              chegou ao limite com a declaração de um funcionário 
              da farmácia do DAS (Departamento de Ação Social) 
              da Prefeitura de Taubaté para a mãe, dona Geni, que 
              pretendia buscar os medicamentos vitais para a sobrevivência 
              da filha. “Os medicamentos estão em falta porque a 
              Prefeitura não tem verba para comprar. Volte no ano que vem”, 
              disse o funcionário. As frases foram talvez até mais 
              forte que a colisão do Opala para Maria Antonieta. “O 
              lixo é reciclado, a vida não é e minha vida 
              vale mais do que meu voto”, desabafa a ex-policial militar. “Já é a segunda vez que isso acontece na gestão 
              de [Roberto] Peixoto”, revolta-se dona Geni que, no final 
              de 2005, afirmou que ouviu de outro funcionário a mesma informação. 
              “Se não têm dinheiro para comprar remédios, 
              por que eles não economizam e param de gastar com rotatórias 
              pela cidade inteira?”, questiona.
 As exigências burocráticas eleitoreiras implantadas 
              pela prefeitura sob a supervisão do dr. Pedro Henrique, diretor 
              da Saúde, revoltam ainda mais a ex-policial militar: “É 
              um absurdo a prefeitura exigir o título de eleitor para cadastro 
              do Cartão SIM de meus pais e de mim. E, ainda por cima, eu 
              não recebi nenhuma cartão até agora”, 
              afirma. “Isso não aconteceu uma única vez quando 
              o prefeito era o Bernardo Ortiz”. Segundo ela, que considera 
              o ex-prefeito “muito chato”, Bernardo Ortiz fez muito 
              mais do que entregar os medicamentos quando solicitados pelos médicos 
              do Qualist. “Foi ele [Ortiz] o responsável pela compra 
              da bomba de infusão de Morfina que eu tanto necessitava”.
 
 Esperança
    Maria Antonieta deposita sua eterna esperança 
              em sua família. Na foto, ela e sua filha mais velha
 
 A filha mais velha, que à época tinha pouco mais de 
              um ano de vida, aprendeu a trocar a fralda geriátrica da 
              mãe como apenas 3 anos. Os cuidados com a mãe despertaram 
              na filha a vontade se seguir a carreira de enfermeira. Hoje, ela 
              está no segundo ano do curso técnico em enfermagem. 
              É em razão do amor incondicional da família 
              que Maria Antonieta Inácio de Oliveira ainda encontra força 
              para lutar e deixar ser mais uma na famigerada estatística 
              do descaso brasileiro.
 
 
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