Eu sabia que seria assim. Jurava até. 
                      E não deu outra: só se fala em futebol. Mesmo 
                      quem gosta tanto deste esporte está espantado com 
                      a ênfase nesta Copa. E nem se pensa no eco louco de 
                      uma derrota. Chega a ser fantástico o entusiasmo 
                      exarado das apresentações da Seleção. 
                      Lojas do mundo inteiro estampam nossos jogadores como os 
                      melhores do mundo e o verde e amarelo enfeita vitrines da 
                      Nike, Sony, Disney em Nova York como no Brasil todo. E tudo 
                      se dimensiona espalhado em roupas, chapéus, guarda-chuvas, 
                      papel de cartas e embalagens. 
                      É uma estranha febre sem dúvidas, mas cheia 
                      de graça e promessa. O futebol é o ópio 
                      bom do povo que se entorpece de alegria sã. E a Copa 
                      tem mesmo que ser celebrada, pois até o amargo Nelson 
                      Rodrigues reconheceu que a vitória de 1958 promoveu 
                      uma virada no humor brasileiro que então, pela vez 
                      primeira, teve sua auto-estima dilatada e diminuído 
                      o crônico complexo de inferioridade que nos distingue 
                      mundo afora. Foi o grande alento que precisávamos 
                      para nos ver melhores em alguma coisa. 
                    Antes da Copa passada, recebi a visita de 
                      Alex Bellos, jornalista inglês que fazia pesquisas 
                      sobre o aclamado livro que em português recebeu o 
                      sugestivo título de “Futebol, o Brasil em campo” 
                      (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003). Parte do resultado 
                      de nosso encontro está no capítulo V, “O 
                      anjo de pernas tortas” onde é rendida a mais 
                      justa das homenagens ao saudoso Mané Garrincha. 
                      Na ocasião, falávamos do significado das pernas 
                      na cultura brasileira. Entre menções a Roberto 
                      DaMatta e demais autores que já definiram que “não 
                      existe pecado abaixo do Equador” (lembrando que na 
                      cultura brasileira “Equador” equivale, no corpo 
                      humano, ao umbigo) recorri ao nosso Monteiro Lobato e à 
                      famosa enquete sobre o Saci. Assim Bellos assinalou o caso: 
                      “outra das criações mais populares do 
                      Brasil – certamente a mais original, de acordo com 
                      Monteiro Lobato, pioneiro da literatura infantil brasileira 
                      – é o saci-pererê. O endiabrado saci-pererê 
                      possui três características definidas: é 
                      preto, fuma um cachimbo e tem uma perna só. Está 
                      sempre fazendo os outros de tolos, libertando cavalos à 
                      noite, estragando espigas de milho; causando caos onde reina 
                      a calma. Sua perna única o torna leve e ligeiro. 
                      A maneira de pará-lo e aprisiona-lo num redemoinho”.
                      No mesmo capítulo, Bellos, ainda falando de 1958, 
                      recorda que “o jogo contra os soviéticos foi 
                      também o momento em que o Brasil ficou mais preto. 
                      Pelé era negro, Garrincha uma mistura de sangue negro 
                      e índio. O time que começou o jogo contra 
                      a Áustria tinha apenas um jogador negro, Didi. Na 
                      fase final do torneio, o Brasil escalou três negros 
                      e dois mestiços – o primeiro time inteiramente 
                      multirracial a vencer uma Copa do Mundo”.
                      Recentemente, Bellos visitou-me novamente. Desta feita, 
                      o tema que matizou a conversa foi a questão dos goleiros. 
                      O jovem inglês anda preocupado em explicar a existência 
                      de uma hierarquia interna, racial e surda, na composição 
                      dos times. A atenção absoluta do jornalista 
                      está centrada em definir porque, pela primeira vez, 
                      teremos um negro como goleiro. 
                      A constatação que passa reto a qualquer nacional 
                      clamou cuidados dele que contrastou a “morenês” 
                      da linha de frente e a hegemonia branca dos goleiros. Certamente 
                      o problema é interessante, mas fica ainda mais atraente 
                      quando lembramos que os jogadores mais queridos do Brasil 
                      sempre obedeceram à máxima afetiva de nossa 
                      cultura que os chama pelo primeiro nome, ou por apelidos 
                      carinhosos (Pelé, Didi, Garrincha, Robinho, Ronaldinho 
                      Gaúcho). No caso em pauta, Dida tanto é preto 
                      como negro. Estaria aí a prova da revolução 
                      racial? Caso a resposta seja afirmativa, não resta 
                      dúvida que o Brasil mudou e que o futebol é 
                      mesmo uma boa arena para a verificação das 
                      alterações de conceitos de preconceitos. Então 
                      por isto também, viva a Copa do Mundo.