Testemunho emocionado de um trindadeiro sobrevivente do descaso das autoridades de todos os níveis para com os moradores e turistas que visitam uma das mais lindas praias do Brasil , quiçá do mundo, que resultou na morte de 15 cidadãos no domingo, 06

 

Por Davi Paiva* (texto e fotos)

 

Nos últimos dias a repercussão da foto da criança Síria que morreu afogada na Turquia mostrou ao mundo a situação deplorável dos refugiados. Faz anos que essa situação acontece todos os dias, mas só agora passou a doer em nós. Muito se debateu sobre a importância da imagem que, apesar de ofender alguns, está sendo fundamental para que atitudes sejam tomadas na tentativa de amenizar o problema.

O feriado de independência do Brasil também proporcionou imagens que ficarão marcadas na história, principalmente para os moradores de uma pequena vila caiçara localizada no litoral sul do Rio de Janeiro. Foram 15 óbitos e mais de 60 feridos no mais grave acidente de trânsito ocorrido na cidade de Paraty.

 

Vista pacial da praia do Cepilho, na chegada a Trindade

Vista parcial da praia do Cepilho, na chegada a Trindade

 

Populares e equipes de resgate e saúde fizeram o possível pelas vítimas

Populares e equipes de resgate e saúde fizeram o possível pelas vítimas

 

Conhecida como ‘Deus me Livre’, a íngreme ladeira que leva às belas praias de Trindade tem fama de perigosa desde o tempo que ainda era de barro. Mas foi somente após a chegada do asfalto, em 1999, que acidentes graves passaram a ocorrer. Ocorrências que aumentaram após a circulação dos ônibus da Colitur, empresa concessionária do transporte público da cidade. Com aproximadamente 14 metros de comprimento por 2,5 de largura, os veículos transportam milhares de pessoas durante os feriados prolongados. A estrada de acesso, em alguns trechos, tem pouco mais de 3 metros de largura.

Evito transitar nesse local em determinados horários. Foram muitos os apuros ao encontrar com o ônibus de frente nas curvas de Trindade. Como se não bastasse os próprios perigos da estrada sinuosa, são diversos os relatos de alta velocidade, imprudência dos motoristas, falta de manutenção adequada e, principalmente, superlotação dos veículos de transporte coletivo.

Não se sabe ao certo quantas pessoas estavam dentro do ônibus ‘RJ.116.021’ que saiu por volta das 11 horas da manhã do dia 6 de setembro do terminal rodoviário de Paraty com destino a Trindade, mas a polícia confirmou a impressão que os passageiros tinham desde a rodoviária. O ônibus, com capacidade para 45 pessoas, levava quase o dobro. A causa do acidente só será conhecida após a conclusão da perícia em 30 dias, mas informações apontam para falha no sistema de freios do veículo. Registros fotográficos mostram o pneu completamente “careca”.

 

Chegada de uma ambulância do Corpo de Bombeiro...

Chegada de uma ambulância do Corpo de Bombeiro…

 

... resgate de um dos feridos em estado grave

… resgate de um dos feridos em estado grave

 

Em 2014, reuniões com a participação do Ministério Público trataram de um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC para melhorar as condições do transporte coletivo em Paraty, mas a Colitur se negou a assinar o acordo. Segundo a Prefeitura de Paraty, somente a partir de 2013 foram iniciadas operações de fiscalização junto à concessionária que atua no município há mais de 30 anos. Ainda segundo informações oficiais, “o ônibus envolvido no acidente não constava na relação dos veículos que operam nas linhas municipais de Paraty, tendo sido este provavelmente inserido pela Colitur para suprir a demanda no feriado, sem que fosse realizada a prévia e devida comunicação ao Departamento de Transporte.”

 

Os bombeiros tiveram muito trabalho para retirar as vítimas das ferragens

Os bombeiros tiveram muito trabalho para retirar as vítimas das ferragens

 

Bombeiros e profissionais das saúde foram ajudados por populares

Bombeiros e profissionais das saúde foram ajudados por populares

 

Em junho deste ano, o MP tomou conhecimento de que o contrato de concessão do serviço havia expirado e até o momento não há sinal de licitação. Pelo menos outras duas ações civis contra a Colitur tramitam na Vara Única de Paraty. A Justiça já havia determinado o bloqueio de R$ 1 milhão da empresa para indenização à uma vítima de atropelamento.

Há 10 anos um abaixo assinado com 534 assinaturas realizado pela Associação de Moradores do Corumbê, outro bairro de Paraty, já denunciava as péssimas condições dos veículos da empresa e o despreparo dos motoristas. Segundo a denúncia, os veículos enviados à Paraty vinham sucateados de outras regiões do estado.

 

Pneus carecas chamavam a atenção

Pneus carecas chamavam a atenção

 

Pneu visivelmente careca, uma das prováveis causas do acidente

Pneu visivelmente careca, uma das prováveis causas do acidente

 

Em nota oficial a prefeitura afirmou que irá alterar o formato do transporte público da linha Parati-Trindade, mas não informou quais mudanças pretende adotar. É lamentável que pessoas tenham que pagar com a própria vida por uma tragédia previsível e anunciada. Resta agora organizar documentos, reunir provas para condenar os responsáveis pela tragédia, obrigar a empresa a indenizar as famílias e prestar um serviço de transporte mais digno e seguro para turistas e moradores.

Sentimentos às famílias das vítimas e parabéns a comunidade de Trindade que com união realizou diversos resgates.

E agora Prefeitura de Paraty? E agora Colitur?

 

Uma das vítimas à beira da estrada sob o olhar constrangido de testemunhas

Uma das vítimas à beira da estrada sob o olhar constrangido de testemunhas

 

******

Formado em jornalismo pela Unitau e ex-colaborador de CONTATO, Davi Paiva nasceu em Trindade e é autor (juntamente com Silvio Delfim) de “Trindadeiros, 30 anos depois”, um documentário sobre a luta dos caiçaras contra a pressão do mercado imobiliário que queria expulsá-los por ocasião da abertura da rodovia Rio-Santos. Depois de 10 anos resistência, os caiçaras venceram em Trindade, mas perderam em Laranjeiras, um condomínio que hoje hospeda uma boa parte do PIB do Brasil